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A Transnacionalidade dos direitos humanos e o ensino jurídico no Brasil

Revista DIREITO UFMS | Campo Grande, MS | v.4 | n.2 | p. 33 – 43 | jul./dez. 2018

A TRANSNACIONALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E O
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

THE TRANSNATIONALITY OF THE HUMAN RIGHTS AND
LEGAL EDUCATION IN BRAZIL

 

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Samyra H. Dal Farra Naspolini

Doutora em Direito pela PUC/SP. Professora e Pesquisadora do Mestrado e Doutorado em Direito da UNIMAR e do Mestrado da FMU. Professora da FADI Diretora Executiva do CONPEDI.

Vladmir Oliveira da Silveira

Professor Titular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduação em Direito e Graduação em Relações Internacionais pela mesma Universidade.

E-mail: vladmir@aus.com.br

 

AUTORES CONVIDADOS

Resumo: O presente artigo possui por objeto de estudo as críticas que recebe o Ensino Jurídico no Brasil e os Direitos Humanos como matéria estudada nos Cursos de Direito. A problemática geral com a qual trabalha é a de se, identificadas no Ensino Jurídico no Brasil as críticas que serão apresentadas, teria o ensino dos Direitos Humanos alguma possibilidade de realizar modificações nesta situação? A hipótese da pesquisa é a de que, pela sua natureza, a matéria estudada em Direi- tos Humanos possui elementos que podem, quando bem trabalhados pelos docentes e discentes, superar alguns problemas antigos e bastante arraigados do Ensino Jurídico. Neste sentido, o obje- tivo da pesquisa é verificar as possibilidades da hipótese levantada. A falta de preparo dos egressos dos cursos de Direito não é novidade, e revela a má qualidade do ensino nas Faculdades de Direito de nosso país. O despreparo é generalizado atingindo tanto a formação científica quanto a técnica. Para tanto, no primeiro item do artigo são estudadas as várias críticas ao Ensino Jurídico que po- dem ser subdivididas em: questões estruturais, questões funcionais e questões operacionais. No âmbito da estrutura verificam-se críticas ao paradigma epistemológico. No âmbito funcional, crí- ticas à formação para o mercado de trabalho que levam a problemas de identidade e legitimidade dos bacharéis. Por fim, no âmbito operacional as críticas serão dirigidas à metodologia didático-pedagógica e ao currículo dos cursos. No último item essas críticas são reapresentadas em contra- ponto com o conteúdo, metodologia e conceitos transnacionais que podem ser trabalhados ao se ministrar os Direitos Humanos no curso de graduação em Direito. Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, desenvolvido com base na pesquisa bibliográfica e histórica para qual se utiliza do método indutivo. Na Conclusão recupera-se a hipótese de trabalho e verifica-se que existem várias potencialidades na matéria de Direitos Humanos para se superar os problemas do Ensino Jurídico, levando a uma formação interdisciplinar, politica e emancipatória dos discentes.

Palavras-chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos; Educação Jurídica; Metodologia de Ensino do Direito; Direito Educacional; Transnacionalidade.

 

Abstract: The purpose of this article is to study the criticisms that the Legal Education receives in Brazil and Human Rights as a subject to be studied in Law Courses. The general problem is that, identified the criticisms, would the teaching of Human Rights have any possibility of making any change in such situation? The hypothesis of the research is that, by its nature, the subject studied in Human Rights has elements that can, when well worked by teachers and students, overcome some old and deeply rooted problems of Legal Education. In this sense, the objective of the research is to verify the possibilities of the hypothesis herein raised. The lack of preparation of graduates of Law courses is not new, and reveals the poor quality of teaching in the Faculties of Law in Brazil. Unpreparedness is widespread, reaching both scientific and technical training. Therefore, the first item of the article examines the various criticisms of Legal Education that can be subdivided into: structural, functional and operational issues. Within the framework of the structure, criticisms are verified to the epistemological paradigm. In the functional scope, criticisms are addressed to the training for the job market that lead to problems of identity and legitimacy of the bachelors. Finally, in the operational scope, criticisms will be directed to the didactic-pedagogical methodology and to the curriculum of the courses. In the last item, these criticisms are presented in counterpoint with the content, methodology and transnational concepts that can be worked out in the administration of Human Rights in graduation in Law. It is a descriptive and exploratory study, developed based on the bibliographical and historical research for which the inductive method is used. In the Conclusion, the hypothesis is recovered and it is verified that there are several potentialities in the Human Rights field to overcome the problems of Legal Education, leading to an interdisciplinary, political and emancipatory formation of the students.

Keywords: International Law of Human Rights; Legal Education; Teaching Methodology of the Law; Educational Law; Transnationality.

 

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Críticas ao Ensino Jurídico. 3. Os Direitos Humanos no Ensino Jurídico. Conclusão. Referências.

 

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo possui por objeto de estudo as críticas que recebem o En- sino Jurídico no Brasil e os Direitos Humanos como matéria estudada nos Cursos de Direito.

A problemática com a qual se trabalha é a de se, identificadas no Ensino Jurídico no Brasil as críticas que serão apresentadas, teria o ensino dos Direitos Humanos alguma possibilidade de realizar modificações nesta situação? Em ou- tras palavras e apresentando a hipótese da pesquisa, suspeita-se que, pela sua natureza, a matéria estudada em Direitos Humanos possui elementos que po- dem, quando bem trabalhados pelos docentes e discentes, superar alguns pro- blemas antigos e bastante arraigados do Ensino Jurídico, o qual, em razão desses problemas, continua sofrendo várias críticas.

Para a apresentação de algumas dessas críticas, no primeiro momento verificam-se críticas estruturais, dirigidas ao paradigma epistemológico da ci- ência do Direito. No âmbito funcional, apresentam-se críticas à formação para o mercado de trabalho, que levam a problemas de identidade e legitimidade dos bacharéis. Por fim, no âmbito operacional as críticas serão dirigidas à metodologia didático-pedagógica e ao currículo dos cursos de graduação em Direito. No último item, essas críticas são reapresentadas em contraponto com o conteúdo e a metodologia que podem ser trabalhadas ao se ministrar os Direitos Humanos no curso de graduação em Direito.

Na conclusão recuperar-se-á a hipótese de trabalho para verificar se a mes- ma restará comprovada. Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, desen- volvido com base na pesquisa bibliográfica e histórica, para qual se utilizará do método indutivo.

 

2 CRÍTICAS AO ENSINO JURÍDICO

Neste item, utilizar-se-á a subdivisão criada por Aguiar (1991) e Rodrigues (1995), segundo os quais os problemas que o ensino jurídico apresenta podem ser subdivididos em: questões estruturais, questões funcionais e questões ope- racionais.

Há quinze anos, Rodrigues já afirmava: “a realidade do ensino jurídico no Brasil é que ele não forma, deforma”. Apesar de serem os cursos mais procurados nos vestibulares e formar todos os anos mais profissionais do que podem ser absorvidos pelo mercado de trabalho, existe uma reclamação generalizada por bons profissionais. Isto só pode ser explicado em grande parte pela má qualida- de do ensino jurídico. Como pontua o teórico, “É necessário reformulá-lo. Essa é uma constatação geral” (RODRIGUES, 2000, p. 16).

A análise estrutural do ensino do Direito revela que este é ensinado somente com base em manuais que reproduzem o paradigma dogmático da Ciência Jurídi- ca, transformando-o em uma educação conservadora e tradicional, que, a partir do estudo abstrato das normas jurídicas, desconhece as reais necessidades so- ciais, uma vez que só se restringe à análise da validade destas normas, esquecen- do totalmente as questões de sua eficácia e legitimidade.

Neste sentido, é mantida a tradição dos cursos jurídicos no Brasil, de total alienação e despolitização (FARIA, 1987, p. 29). Para que se possa estudar a lei, são deixadas de lado questões de suma importância para o país, tais como cor- rupção, impunidade, sustentabilidade, Direitos Humanos e desenvolvimento, só para citar alguns exemplos.

A análise funcional do Ensino Jurídico é aquela que leva em conta a quali- dade do resultado final deste ensino. Avalia o ensino no seu aspecto de formador de profissionais qualificados (ou não) para o desempenho de suas funções pro- fissionais (ARRUDA, 1988). Em geral, a falta de preparo dos egressos dos cursos de Direito não é novidade e revela a má qualidade do ensino nas Faculdades de Direito de nosso país. O despreparo é generalizado, atingindo tanto a formação científica quanto a técnica.

Ainda que os parâmetros adotados pelos Exames de Ordem e pelos concur- sos públicos na área jurídica não devam ser utilizados como absolutos para se avaliar a qualidade do ensino da graduação, os números baixíssimos de aprova- ção nestas provas e concursos comparados ao número de alunos que saem das Faculdades de Direito e que prestam estas avaliações todos os anos, sinalizam que algo não vai bem.

Porém, o número de cursos jurídicos e de vagas em cursos já existentes con- tinua aumentando a cada ano. Algumas razões são apontadas para explicar o nú- mero de procura dos alunos por cursos jurídicos e a expansão cada vez maior do número de cursos e de vagas nos cursos já existentes (ADEODATO, 2002, p. 44– 45). Dentro da lógica da comercialização do ensino, que parece ser a tônica que tem governado as iniciativas no âmbito educacional, principalmente das escolas particulares, os cursos de Direito revelam-se muito rentáveis, pois são de baixo custo para instalação e manutenção.

As aulas-conferência podem ser ministradas por um único professor a um número grande de alunos. Além disso, prescindem de laboratórios especializa- dos e de gastos com biblioteca, uma vez que a pesquisa também não é estimulada pelos professores. Há também o fato de que as Faculdades recrutam seus docen- tes entre advogados, juízes, promotores e profissionais do Direito que, em geral, já possuem outra fonte de renda e, por isso, poderão receber uma menor remu- neração. Por outro lado, os próprios estudantes se sentem beneficiados com a pouca exigência do curso, interessando-se somente pelo diploma. Assim, forma-se um ciclo vicioso: há mais vagas sendo oferecidas nos cursos jurídicos do que em outros cursos, tornando mais fácil a aprovação no vestibular. Por ser um dos cursos com maior facilidade de aprovação nos vestibulares, acaba sendo o mais procurado e, por ser um dos cursos mais procurados nos vestibulares, há maior interesse das Instituições de Ensino em oferecê-los, consequentemente havendo mais vagas sendo oferecidas.

Tudo isso levou ao que já foi denominado por Edmundo Arruda, na década de noventa, de mercado de trabalho semi-saturado (RODRIGUES, 1993, p. 17), levando ao desvio de egressos dos cursos de Direito para o mercado parajurídico (ARRUDA JR., 1989), no qual tais egressos passam a desempenhar funções téc- nico-burocráticas no âmbito do Estado (RODRIGUES, 1993, p. 17). Importante esclarecer que o semi-saturamento se dá na carreira de profissional liberal, uma vez que, para os concursos públicos, normalmente as vagas não chegam a ser preenchidas, por falta de nota mínima dos candidatos para a aprovação.

Na realidade o “judicialismo”1 imperante faz com que os estudantes só aprendam as técnicas necessárias para a atuação profissional no âmbito judicial e contencioso. O que leva ao despreparo para lidar com novas atividades emer- gentes que demandam profissionais atualizados e com visão abrangente acerca do fenômeno jurídico.

Esta questão remete para o problema da identidade e legitimidade dos pro- fissionais do Direito, adequadamente chamados de “operadores jurídicos”, uma vez que não fazem mais do que “operar” com o sistema jurídico, como se este fosse uma máquina.

A formação para a cidadania, na qual o estudo do Direito necessariamente implica, bem como o combate às formas de opressão e exclusão na sociedade brasileira exigem “uma cultura jurídica capaz de ir ao encontro da realidade so- cial, de imaginá-la e construí-la como direito” (UNGER, 2001, p. 10), o que, no geral, não é estimulado de nenhuma maneira em nossas Faculdades.

No que diz respeito às questões didático-pedagógicas, o Ensino Jurídico continua sendo realizado basicamente pela mesma metodologia da época de sua criação, ou seja, a aula-conferência. Também conhecida como “aula coimbrã”, numa alusão ao método praticado na Universidade de Coimbra, a aula-conferên- cia caracteriza-se por ser uma aula expositiva dada para um elevado número de alunos numa mesma sala de aula. O conteúdo desta aula normalmente é o co- mentário de Códigos por meio do método dedutivo (RODRIGUES, 1993, p. 16).

São recentes as preocupações pedagógicas no âmbito do Ensino Jurídico e en- quanto alguns cursos menos tradicionais já começam a recorrer a técnicas pedagó- gicas mais dinâmicas, participativas e problematizantes, as Faculdades de Direito continuam “como redutos de uma transmissão arcaica do saber jurídico, empreen- dida, quase sempre, por profissionais bem sucedidos e indiferentes às modernas exigências pedagógicas e metodológicas” (WARAT; CUNHA, 1977, p. 53).

Em razão dessa realidade, os métodos antigos passaram a ser questionados e a aula expositiva foi o centro das atenções. Alguns autores defendem a substi-tuição do método dedutivo da aula expositiva pelo método indutivo, que pressu- põe a aula dialogada e o estudo de casos.

1 “O judicialismo é o que se pratica quando nas faculdades o ensino não vai além de indicar aos alunos a regra material que o Estado prevê para conflitos e o consequente caminho para a sua efe- tivação pelo juiz” (VILLELA: 1974, p. 43).

A reprodução da Dogmática Jurídica nos Cursos Jurídicos, segundo FARIA, “leva a uma saturação ideológica no conhecimento do Direito, uma inércia refle- xiva, uma falta de interesse no que se refere à mudança social, um certo confor- mismo e uma inclinação pela adequação de seus conceitos às situações conjun- turais” (FARIA, 1988, p 17). Desta forma, os métodos tradicionais são os mais utilizados e o raciocínio jurídico muito pouco estimulado.

Por outro lado, a relação do professor com o aluno é ao estilo tradicional, que vê o aluno como um recipiente vazio de conteúdo que será preenchido pelo conhecimento oriundo do professor. Este, por sua vez, é o detentor do conheci- mento e irá transmiti-lo pela educação formal. Essa transmissão autoritária do conhecimento gera, como resposta, a passiva memorização dos alunos, que pode até servir para a obtenção de um título universitário, mas que não habilitam os alunos a decisões maduras e autônomas. Assim, o ensino recebido em sala de aula é o único responsável pela formação do aluno, não havendo nenhuma ativi- dade extraclasse concorrendo para a sua formação.

Por fim, as matrizes curriculares dos Cursos de Direito também têm mere- cido a atenção das críticas que são dirigidas ao Ensino Jurídico. Tradicionalmen- te no Brasil o currículo mínimo sempre acabou transformando-se no máximo. Questões de mercado e competitividade das Faculdades são decisivas neste par- ticular. Os currículos são, regra geral, compostos preponderantemente de maté- rias codificadas, ou seja, dogmáticas. A duração do curso é em média de 5 anos. O currículo é normalmente fixo ou pouco flexível, deixando nenhum ou pouco es- paço para a busca de formação autonomamente pelo aluno (RODRIGUES, 1993, p. 16).

Atividades complementares, como pesquisa e extensão e a Monografia de final de curso, só passaram a ser obrigatórias a partir da Portaria n. 1886/94, sendo que antes não eram nem referidas nas grades, fazendo com que a formação do bacharel fosse resultado exclusivo do ensino em sala de aula. Bastava compa- recer 5 dias da semana a 4 horas de aulas por dia durante quatro ou cinco anos para ao final obter o diploma (ADEODATO, 2002, p. 44 – 45). Porém, mesmo com a previsão legal, essas atividades têm sido cada vez mais negligenciadas e reali- zadas apenas para “cumprir tabela”.

A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, na carta de Natal, em 2010, entre outras questões, já apontava que para se realizar uma verdadeira Educação Ju- rídica, ou seja, algo que vai muito além do simples Ensino Jurídico, é necessário realizar nos cursos de Direito o famoso tripé do ensino, pesquisa e extensão, para que a formação do bacharel se dê de forma muito mais ampla do que restrita ao ensino na sala de aula.

O mesmo acontece com o Estágio de Prática Jurídica que, apesar de ser de fundamental importância para a formação prática do bacharel, não só como ad- vogado, mas também nas outras carreiras jurídicas, na maioria dos casos resu- me-se a uma atividade de fachada, relegado ao cumprimento de um serviço assis- tencialista e restrito a somente algumas atividades, como, por exemplo, o direito de família.

3 OS DIREITOS HUMANOS NO ENSINO JURÍDICO

O presente artigo opta por não reduzir a concepção de Direitos Humanos à sua dimensão normativa, jurídica, uma vez que considera os Direitos Humanos como:

[…] conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento históri- co, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordena- mentos jurídicos em nível nacional e internacional (LUÑO, 1999, p. 43).

Importante salientar que a história dos Diretos Humanos é a história das lutas e das conquistas da humanidade em determinados contextos históricos, po- líticos e sociológicos considerados violadores de sua dignidade, pelas condições injustas e desumanas que as impõem. Neste sentido, David Sanchez Rubio conce- be os Direitos Humanos a partir de dois referenciais:

[…] como articulação de tramas e processos sociais, políticos, econômi- cos, culturais e jurídicos, de abertura e como a consolidação de espa- ços de luta por concepções particulares de dignidade humana (RUBIO, 2010, p. 122).

Por esta razão, a pauta de Direitos Humanos, nunca é uma pauta acabada. Na medida em que a sociedade se complexifica e os processos econômicos e tec- nológicos vão criando novos contextos e possibilidades de situações e fatos so- ciais antes inimagináveis, surgem novas necessidades de proteção à dignidade humana e novos sujeitos de direitos a serem protegidos. Assim, os Direitos Hu- manos serão aqui considerados como fruto de diversas variáveis históricas, que não podem se esgotar em sua dimensão dogmática, e que surgem na vida jurídica mediante um processo dinamogênico:

No processo da dinamogenesis, a comunidade social inicialmente re- conhece como valioso o valor que fundamenta os direitos humanos (dignidade da pessoa humana). Reconhecido como valioso, este valor impulsiona o reconhecimento jurídico, conferindo orientação e conte- údos novos (liberdade, igualdade, solidariedade etc.) que expandirão o conceito de dignidade da pessoa. Essa dignidade, por sua vez, junto ao conteúdo dos direitos humanos concretos, é protegida mediante o com- plexo normativo e institucional representado pelo direito (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 199).

Por esses motivos os Direitos Humanos, como objeto de estudo e de ensino, podem levar à problematização dos pressupostos ideológicos e epistemológicos do paradigma dominante de Ciência Jurídica combatendo a redução do Direito à norma formalmente válida. Assim, o ordenamento jurídico pode ser trabalhado como um construído concreto, histórico e cultural, um conjunto de regras em movimento, sujeito a contínua produção e reprodução, onde têm espaço as forças extra legislativas e extra estatais.

A exigência do conteúdo de Direitos Humanos nos concursos públicos e nas provas da OAB, não pode restringir esse conteúdo a questões dogmatizadas e apostiladas em esquemas. Para tanto, são necessárias as abordagens interdisci- plinares, sem as quais a Ciência do Direito não poderá superar suas contradições atuais nem ser reintegrada no conjunto das ciências sociais.

Com relação às questões funcionais, inicialmente, um Curso de Direito pre- cisa ter um Projeto Político Pedagógico definido, a partir do perfil do profissional que deseja formar. Da elaboração deste Projeto devem participar, além dos diri- gentes da Faculdade, membros do corpo docente e discente, para que haja um consenso sobre o Curso que se quer criar e o consecutivo comprometimento de todos com o Curso aprovado ao final dos trabalhos. É interessante, também que, na elaboração deste Projeto, possa-se contar com a participação de profissionais da área de educação e das ciências sociais.

Na matriz curricular a ser definida, a matéria de Direitos Humanos não deve entrar somente para fornecer conhecimentos dogmáticos que serão cobrados nos concursos. Isso seria condenar os Direitos Humanos à sua dimensão estrita- mente dogmática, conforme visto acima, descaracterizando por completo a sua essência política e dinâmica. Por ser, pela sua natureza, uma matéria transdisci- plinar, esta será melhor trabalhada quando o aluno já possuir habilidades para lidar com o Direito Internacional, História do Direito, Ciência Política, Sociologia do Direito, enfim, temas os quais os Direitos Humanos perpassa e consolida.

Na definição do perfil do profissional que será egresso do curso deve-se levar em conta a necessidade de prepará-los para ser um fomentador da cidadania, trabalhando a serviço da sociedade e utilizando-se do Direito como um instrumento de libertação, emancipação, igualdade e de justiça social efetiva, todos valores ínsitos nos Direitos Humanos, sem os quais os Direitos Humanos não se concretizam. A educação em Direitos Humanos só se realiza com o desenvolvi- mento desta preocupação nos alunos e futuros bacharéis.

A interdisciplinaridade, ao contrário do que alguns Cursos têm tentado in- crementar, não se realiza em um conjunto de disciplinas estanques e metodologi- camente colocadas nos currículos, o que na realidade se constitui em multidisci- plinaridade. Ela se caracteriza pela análise do objeto de estudo a partir de vários ramos do conhecimento em um mesmo momento, buscando apreender todos os aspectos desse objeto, em sua integridade. Somente por meio da abordagem interdisciplinar, o fenômeno jurídico poderá ser apreendido pelo estudante de Direito como algo além da norma jurídica válida.

Ao invés de disciplinas que repetem o padrão dos códigos, os conteúdos a serem estudados no decorrer do curso podem ser agrupados em grandes temas, ou setores, e serem abordados de forma interdisciplinar, contribuindo assim para a construção de um novo objeto para a Ciência Jurídica.

Os temas a serem estudados interdisciplinarmente poderão variar con- forme as características regionais e as demandas sociais da localidade onde o curso está inserido, bem como o perfil do egresso definido no Projeto Pe- dagógico, porém o estudo dos Direitos Humanos só pode ocorrer desta for- ma, uma vez que para a compreensão de suas características são necessários conhecimentos de História, Sociologia, Direito Penal, Direito Civil, Direito In- ternacional, Direito Ambiental. Além desses, outros conteúdos de presença obrigatória devem ser os de Ética, Semiologia e Hermenêutica e Argumenta- ção Jurídica.

Além do ensino, as atividades de pesquisa – com exigência de Monografia ao final do curso – e de extensão – na modalidade de assessorias jurídico-po- pulares, e não as famosas extensões assistencialistas que proliferam no Brasil– são fundamentais para a formação de um profissional com sólida base teórica e comprometimento com a realidade social que o rodeia. Isso é o que se espera de uma autêntica Educação Jurídica, ou seja, um ensino comprometido com pesqui- sa e extensão. Para tanto, o profissional do Direito precisa estar situado em seu tempo e espaço local e global, apto a enfrentar os desafios e as novas formas de sociabilidade que a complexificação célere da sociedade irá lhe apresentar. Deve ter uma educação jurídica que o forme competente para o exercício das várias profissões jurídicas, mas também consciente do seu papel político dentro de uma sociedade em mudança.

Neste sentido, no que diz respeito aos Direitos Humanos, a extensão prati- cada mediante as Clínicas de Direitos Humanos pode contribuir para a formação de habilidades não só de conciliação, mas também de advocacia nesta área tão pouco estimulada nas Faculdades de Direito, como a atuação nas Cortes e a mili- tância por meio das Organizações Não Governamentais.

Entrando na questão do método, a pluralidade de metodologias deve ser a melhor alternativa na Educação em Direitos Humanos. O que é importante é que este deve possuir estrita relação com a filosofia que fundamenta o Projeto Pedagógico do curso. Excluindo-se os métodos autoritários, os enciclopedistas e os codicistas, e dando-se preferência àqueles que estimulem a participação do aluno e o seu raciocínio sobre o tema levando à emancipação do próprio aluno.

CONCLUSÃO

Os Direitos Humanos foram aqui considerados como fruto de diversas va- riáveis históricas, que não podem esgotar-se em sua dimensão dogmática, e que surgem na vida jurídica mediante um processo dinamogênico. Por esses motivos os Direitos Humanos como objeto de estudo e de ensino, por meio de abordagens interdisciplinares, podem levar o ordenamento jurídico a ser trabalhado como um construído concreto, histórico e cultural.

A exigência do conteúdo de Direitos Humanos nos concursos públicos e nas provas da Ordem dos Advogados de Brasil – OAB, não podem restringir esse con- teúdo a questões dogmatizadas e apostiladas em esquemas.

Além do ensino, as atividades de pesquisa e de extensão, que são fundamen- tais para a formação de um profissional com sólida base teórica e comprometi- mento com a realidade social que o rodeia, podem focar nos Direitos Humanos como objeto de investigação, no caso da pesquisa e como atendimento à popula- ção, no caso da extensão. Cursos e palestras em escolas e comunidades também podem contribuir para a conscientização da população em relação aos seus direi- tos fundamentais (e humanos).

O método a ser escolhido para o ensino dos Direitos Humanos deve ser com- patível com o que a formação em Direitos Humanos busca, ou seja, o método deve estar apto a desenvolver habilidades autônomas e emancipatórias.

Estas reflexões almejam que, por meio dos Direitos Humanos, o Ensino Jurí- dico possa desenvolver nos alunos a consciência participativa de sujeitos sociais que são, estimulando-os a pensar, agir, sentir e interpretar com autonomia e de um modo diferente o Direito e a sociedade onde está inserido.

REFERÊNCIAS

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