Samyra Naspolini Sanches
Resumo
O presente artigo tem como tema a proposta de política criminal denominada Direito Penal Mínimo na obra do penalista e criminólogo argentino Eugenio Raul Zaffaroni, a qual se baseia nos Direitos Humanos como fio condutor. O autor parte da ideia de que o sistema penal, em especial os sistemas penais latinoamericanos, encontram-se deslegitimados e estruturalmente impossibilitados de cumprir as funções úteis que legitimam sua existência. Sua posição minimalista postula, a longo prazo, a abolição do sistema penal, mas admite que essa abolição deva passar necessariamente, a curto e médio prazos, de um lado, por uma profunda transformação do sistema penal, através de processos de descriminalização e de redução da pena e, de outro lado, pela reformulação do Direito Penal, utilizando-o como um instrumento contra a violência do próprio sistema penal. Para tanto, o autor recupera algumas garantias liberais do Direito Penal e utiliza-se dos Direitos Humanos, principalmente os enunciados na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, como base fundamental de suas propostas, para adequar a atuação do sistema penal para que esta, além de não os violar, encontre neles seu limite. O objetivo do artigo é o estudo aprofundado da política criminal do autor, buscando responder o que vem a ser e quais os fundamentos do “minimalismo penal” de Eugenio Raul Zaffaroni, e demonstrar que ele apresenta-se como uma tendência político-criminal apta a responder à deslegitimação do sistema penal. Por tratar-se de estudo descritivo, a presente pesquisa foi desenvolvida, utilizando-se do método indutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica. Sua teoria de base é a Criminologia Crítica, uma vez que é a teoria criminológia a que se filia Zaffaroni.
Conclui-se que o Minimalismo Penal revela-se como um empreendimento radical de transformação do sistema penal e da sociedade, propiciando a possibilidade de identificar formas mais democráticas e criativas para a real solução dos conflitos, e não somente para a sua repressão.
Palavras-chave: Minimalismo Penal; Direitos Humanos; Eugenio Raul Zaffaroni; Sistema Penal.
Abstract
This actual article focuses on the proposed Criminal Policy called Minimum Criminal Law written by the Argentinian criminalist and criminologist Eugenio Raul Zaffaroni, which is based on the Human Rights as the common thread. The author expresses that the criminal justice system, especially the Latin American penal systems, are delegitimized and structurally unable to fulfill the useful functions that legitimize their existence. His minimalist position proposes, in a long term plan, the abolition of the penal system, but he admits that this abolition must pass necessarily, in a short and medium term, on one hand through a profound transformation with the decriminalization and the reducing of sentence, and on the other hand, the reformulation of the Criminal Law, to be used as a tool against violence with the law itself. However, the author recovers some liberal assurances from the Criminal Law and uses the Human Rights, especially those contained in the American Convention on Human Rights of 1969, as the foundation of his proposals to adjust the performance of the criminal justice system, not violating them, and also finding its limits.. The aim of the article is the deep study of the author’s criminal policy, seeking to answer what comes to be and which are the fundamentals of “criminal minimalism” for Eugenio Raul Zaffaroni and demonstrate that it shows itself as a political criminal trend able to respond to the illegitimacy of the penal system. As this a descriptive study, the actual research was developed using the inductive method and bibliographic research, its basic theory is the critical criminology that is the Zaffaroni’s theory. Concluding, the Criminal Minimalism reveals itself as a radical Criminal System and Society change, providing the possibility to look for more democratic and creative ways as solution for these conflicts and not only for the repression.
Keywords: Criminal Minimalism; Human Rights; Eugenio Raul Zaffaroni; Criminal System.
Sumário
Introdução. 1 O Realismo Marginal Criminológico. 2 O Minimalismo Penal. 3 Princípios de Direito Penal Mínimo. 3.1 Princípios para a Limitação da Violência por Carência de Elementaríssimos Requisitos Formais. 3.1.1 Princípio de reserva legal ou de exigência máxima de legalidade em sentido estrito. 3.1.2 Princípio de máxima taxatividade. 3.1.3 Princípio da irretroatividade. 3.1.4 Princípio da máxima subordinação à lei penal substantiva. 3.2 Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Pressupostos de Disfuncionalidade Grosseira para os Direitos Humanos. 3.2.1 Princípio da limitação máxima da resposta contingente. 3.2.2 Princípio de lesividade. 3.2.3 Princípio da mínima proporcionalidade. 3.2.4 Princípio do respeito mínimo à humanidade. 3.2.5 Princípio de idoneidade relativa. 3.2.6 Princípio limitador da lesividade à vítima. 3.2.7 Princípio de transcendência mínima da intervenção punitiva. 3.3 Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Qualquer Pretensão de Imputação Pessoal em Razão da sua Notória Irracionalidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo tem como tema a proposta de política criminal denominada Direito Penal Mínimo na obra do penalista e criminólogo argentino Eugenio Raul Zaffaroni, que tem nos Direitos Humanos seu fio condutor.
O autor parte da ideia de que o sistema penal, em especial os sistemas penais latinoamericanos, encontram-se deslegitimados e estruturalmente impossibilitados de cumprir as funções úteis que legitimam sua existência. Sua posição minimalista postula, a longo prazo, a abolição do sistema penal, mas admite que essa abolição deva passar necessariamente, a curto e médio prazos, de um lado, por uma profunda transformação do sistema penal, através de processos de descriminalização e de redução da pena e, de outro lado, pela reformulação do Direito Penal, utilizando-o como instrumento contra a violência do próprio sistema penal.
Os Princípios de Direito Penal Mínimo, enunciados por Zaffaroni, revelam-se, portanto, como estratégias de contração do sistema penal, visando conter a violência na qual se manifesta seu exercício de poder.
Para tanto, o autor recupera algumas garantias liberais do Direito Penal e utiliza- se dos Direitos Humanos, principalmente dos enunciados na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, como base fundamental de suas propostas, para adequar a atuação do sistema penal para que esta, além de não violá-los, encontre neles seu limite.
A justificativa para o artigo é o fato de que o autor argentino, embora tenha denunciado em suas obras vários problemas nos sistemas penais latinoamericanos, o que leva à sua deslegitimação – e embora também tenha apresentado propostas concretas para corrigir tais problemas –, ainda é pouco estudado e conhecido, principalmente nas Faculdades de Direito, afora o fato de que quase nada se tem feito para mudar a realidade apontada por ele. O estudo e a divulgação da importante obra de Eugenio Raul Zaffaroni revelam-se, portanto, como um imperativo para todos aqueles que buscam conhecer melhor a situação dos sistemas penais latinoamericanos e atuar para modificar essa realidade pela via da política criminal.
Para Zaffaroni, a deslegitimação do sistema penal deve-se principalmente ao fato de que ele não se encontra estruturalmente apto a cumprir as funções declaradas em seu discurso oficial e que pretendem justificar sua existência e perpetuação.
Várias pesquisas sociológicas, historiográficas e oriundas da Criminologia Crítica revelaram que o sistema penal não consegue conter a criminalidade nem ressocializar o criminoso por meio da prisão (instituição central dos sistemas penais capitalistas). Por outro lado, apresenta um alto grau de seletividade, tanto na escolha dos bens a serem tutelados pela lei penal, quanto no recrutamento da sua clientela. Outro fator concorrente para a deslegitimação do sistema penal é sua violência operacional, que na realidade faz com que criem mais problemas do que aqueles que visa combater.
Apesar desse fato, assiste-se no momento atual ao surgimento, em vários cantos do planeta – mais precisamente nos Estados Unidos e na Europa, com extensão para toda a América Latina –, dos chamados Movimentos de Lei e Ordem. Tais movimentos difundem, por meio de vasta propaganda ideológica, uma situação de pânico e insegurança em toda a população. Utilizando-se de argumentos como o aumento da criminalidade, principalmente do terrorismo, narcotráfico e crimes hediondos, apresentam como remédio milagroso para a resolução desses problemas, por um lado, o aumento da repressão, baseada no antigo regime punitivo-retributivo, e por outro o fortalecimento da prevenção especial negativa, alicerçada na neutralização do criminoso por meio de prisões de segurança máxima, perpétuas e da pena de morte.
Os resultados do crescimento desse movimento têm sido a inflação de leis altamente repressivas, que violam várias garantias constitucionais, penais e processuais penais, geradas sem o mínimo de pesquisa criminológica e sociológica, o aumento das penas de prisão, e o clamor da população para a instituição da pena de morte.
Todo esse quadro, desalentador para os que possuem a convicção de que o sistema penal é estruturalmente incapaz de resolver tais problemas, impõe aos penalistas e criminólogos críticos a necessidade de construção de uma resposta político-criminal voltada à desmitificação do sistema penal, à contenção da sua violência e à busca de novas formas de resolução dos conflitos.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo o estudo aprofundado da política criminal de Zaffaroni, buscando responder o que vem a ser e quais os fundamentos do “minimalismo penal” do autor. Busca-se igualmente demonstrar que esse minimalismo apresenta-se como uma tendência político-criminal apta a responder à deslegitimação do sistema penal, por meio de um amplo processo de descriminalização, despenalização e desjudicização, baseado no rigoroso respeito aos Direitos Humanos e às garantias jurídicas do Estado de Direito, com o objetivo final de substituir o atual sistema penal por formas mais democráticas e efetivas de resolução dos conflitos. Para tanto, o artigo está dividido em três tópicos aos quais se sucede a Conclusão.
No primeiro tópico será estudado o Realismo Marginal Criminológico de Zaffaroni, que elabora um saber específico para a análise dos sistemas penais latinoamericanos. Considera que estes, além de apresentar as características estruturais inerentes aos sistemas penais capitalistas, possuem uma forma específica de operacionalidade muito mais violenta e seletiva do que os sistemas penais dos países centrais.
No segundo tópico serão estudados os fundamentos e pressupostos do minimalismo penal proposto pelo autor, para no terceiro tópico, analisarem-se os princípios limitadores da violência punitiva – ou seja, os seus Princípios de Direito Penal Mínimo.
Por tratar-se de um estudo descritivo, a presente pesquisa foi desenvolvida utilizando-se do método indutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica. Sua teoria de base é a Criminologia Crítica, uma vez que é a teoria criminológica a que se filia Zaffaroni. Tendo surgido entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, nos países de capitalismo avançado, a Criminologia Crítica consolidou-se a partir do paradigma da reação social e das teorias do conflito. Utilizando e desenvolvendo as pesquisas de sua matriz, os criminólogos críticos aderem a uma interpretação materialista não-ortodoxa dos processos de criminalização nos países do capitalismo avançado.
Na perspectiva da Criminologia Crítica, o sistema penal é definido não somente como um conjunto de órgãos encarregados da elaboração, aplicação e execução da lei penal, mas também como o conjunto de vários fatores que concorrem para o exercício do poder punitivo do Estado, tais como a mídia, a opinião pública, as Faculdades de Direito, as entidades profissionais etc.
As citações em idioma estrangeiro foram traduzidas para o idioma nacional na intenção de proporcionar ao leitor maior linearidade, preservando-se, porém, as fontes que se seguem a cada citação.
Os grifos contidos nas citações são dos próprios autores, encontrando-as também grifadas no original.
Por fim, nas referências, encontram-se elencadas, além das obras citadas nos textos e das diretamente consultadas, outras que concorreram para a elaboração do presente artigo, ainda que de forma indireta.
1 O Realismo Marginal Criminológico
Na obra Em busca das penas perdidas, ZAFFARONI (1991b) desenvolve um panorama geral da deslegitimação do sistema penal, principalmente o latinoamericano, e propõe a reinterpretação do Direito Penal.
No trabalho, que é o corolário de vários estudos anteriores, ele oferece suas principais teses e propostas e expõe a necessidade de desenvolver um saber penal específico para nossa região marginal e reconstruir a Dogmática Jurídico-Penal sobre as bases de um Direito Penal garantidor, que possua os Direitos Humanos como fio condutor (ZAFFARONI, 1991b, p. 06).
Na obra Criminología: aproximación desde un margen, o autor demonstra que o controle social na América Latina caracteriza-se por utilizar como meio uma “punição institucionalizada”, assim entendida como “imposição de uma cota de dor ou privação legalmente previstas, ainda que nem sempre demonstradas como tais pela mesma lei, que pode assinalar-lhe fins diferentes” (ZAFFARONI, 1988, p. 15).
Dessa forma, na América Latina encontram-se o controle social punitivo institucionalizado como punitivo – que é o sistema penal composto por um conjunto de órgãos estatais (polícia, judiciário etc.) – e um controle social punitivo institucionalizado como não-punitivo, sob a forma de assistência, terapia, trabalho etc.
Também faz parte do sistema penal o conjunto de leis que regula seu exercício (leis constitucionais, leis penais, leis processuais etc.), bem como o saber que operacionaliza a aplicação da programação enunciada pela lei: a Dogmática Jurídico- Penal. ZAFFARONI (1988, p. 17-18) acrescenta ainda, como componentes do sistema penal, os meios de comunicação e a opinião pública, que, juntamente com os outros componentes, tornam possível o exercício do controle punitivo institucionalizado.
Com efeito, ao lado desse sistema penal, definido por ZAFFARONI como “sistema penal em sentido estrito”, convivem, além dos já citados, dois outros tipos de controle social punitivo: um sistema penal paralelo e um parainstitucional.
Composto por agências de menor hierarquia e que desempenham menor função punitiva, o sistema penal paralelo é responsável pelo controle dos delitos contravencionais, administrativos etc. O problema desse sistema consiste no fato de que, devido a suas agências não se apresentarem hierarquizadas, possui maior discricionariedade e arbitrariedade.
Exercido por pessoas da sociedade e muitas vezes pelos próprios integrantes do sistema penal, o controle social parainstitucional traduz-se em punições ilícitas e altamente violentas, como penas de morte extrajudiciais, torturas, desaparecimentos, linchamentos etc. Esses tipos de punição ocorrem muito na nossa região, sendo que, por tratar-se de violação aos Direitos Humanos, constituíram o objeto da pesquisa realizada pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, sob a direção de ZAFFARONI, que sobre o tema publicou, em 1984, Sistemas penales y derechos humanos en America Latina.
Por apresentarem os sistemas penais latinoamericanos características comuns a todos os sistemas penais, mas possuírem diferentes formas operacionais concretas, para sua deslegitimação contribui o número de mortes causadas pelo seu exercício de poder – e que para ZAFFARONI (1991b, p. 38 e 67) significam “um genocídio em marcha”1.
1 Ver também, a respeito: ANDRADE (1994a, p. 434-442).
Exemplificando:
Há mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria simulada, ou seja, fuzilamento sem processo). Há mortes por grupos parapoliciais de extermínio em várias regiões. Há mortes por competidores em atividades ilícitas (disputa por monopólio de distribuição de tóxicos, jogo, prostituição, áreas de furtos, roubos domiciliares, etc.). Há ‘mortes anunciadas’ de testemunhas, juízes, fiscais, advogados, jornalistas, etc. Há mortes de torturados que não ‘agüentaram’ e de outros em que os torturadores ‘passaram do ponto’. Há mortes ‘exemplares’ nas quais se exibe o cadáver, às vezes mutilado, ou se enviam partes do cadáver aos familiares, praticadas por grupos de extermínio pertencentes ao pessoal dos orgãos do sistema penal. Há mortes por erro ou negligência de pessoas alheias a qualquer conflito. Há mortes do pessoal dos próprios orgãos do sistema penal. Há alta freqüência de mortes nos grupos familiares desse pessoal cometidas com as mesmas armas cedidas pelos orgãos estatais. Há mortes pelo uso de armas, cuja posse e aquisição são encontradas permanentemente em circunstâncias que nada têm a ver com os motivos dessa instigação pública. Há mortes em represália ao descumprimento de palavras dadas em atividades ilícitas cometidas pelos orgãos do sistema penal. Há mortes violentas em motins carcerários, de presos e de pessoal penitenciário. Há mortes por violência exercida contra presos nas prisões. Há mortes por doenças não tratadas nas prisões. Há mortes por taxa altíssima de suicídios entre os criminalizados e entre o pessoal de todos os orgãos do sistema penal, sejam suicídios manifestos ou inconscientes. Há mortes […]. (ZAFFARONI, 1991b, p. 124- 125)
A violência operacional do sistema penal é possibilitada por três fatores constatados por ZAFFARONI (1991b, p. 21-29):
- “O sistema penal não atua de acordo com a legalidade”;
- “A legalidade nem mesmo é respeitada no âmbito do sistema penal formal”;
- “O exercício de poder por parte do sistema penal é abertamente ilícito”.
Analisar-se-á cada um dos fatores separadamente.
- “O sistema penal não atua de acordo com a legalidade”
O exercício de poder do sistema penal seria legal se todos os seus órgãos atuassem de acordo com a programação legislativa, ou seja, em obediência aos princípios da legalidade penal e da legalidade processual enunciados pelo discurso jurídico-penal.
O princípio da legalidade penal impõe ao exercício de poder punitivo o estrito cumprimento dos requisitos legais para a punição de condutas previstas em lei penal. Só devem ser punidas, conforme este princípio, as condutas típicas, antijurídicas, e na medida da reprovação que indique a culpabilidade.
O princípio da legalidade processual impõe a obrigatoriedade dos órgãos do sistema penal de criminalizar todos os casos de condutas que violem a norma penal, e esta criminalização deve obedecer a rigorosos ritos processuais.
A análise dos textos legais, porém, permite-nos observar que “a própria lei renuncia à legalidade” (ZAFFARONI, 1991b, p. 22) ao excluir do seu âmbito o exercício de poder dos órgãos executivos do sistema, principalmente a polícia.
Nas mãos da polícia, que exerce seu poder punitivo com altíssimo grau de arbitrariedade e seletividade, é que se encontra “o verdadeiro e real poder do sistema penal”, o poder configurador, exercido sobre “os setores mais carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou diferentes) mais incômodos ou mais significativos”.
Assim:
Mediante esta expressa e legal renúncia à legalidade penal, os orgãos do sistema penal são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado, de uso cotidiano, exercido sobre a maioria da população, que se estende além do alcance meramente repressivo, por ser substancialmente configurador da vida social. (ZAFFARONI, 1991b, p. 23)
Baseado nisso, conclui ZAFFARONI que o poder repressivo do sistema penal, consubstanciado no fato de deter, processar e condenar o autor de algumas condutas criminosas é ínfimo se comparado ao poder militarizado de vigilância disciplinar exercido pelas agências executivas. Todavia, apesar desse disparate, o discurso jurídico- penal apresenta o poder repressivo como sendo a totalidade do poder do sistema.
Resumindo:
Em síntese, e levando-se em conta a programação legal, deve-se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal (o que cumpre a função de disciplinarismo verticalizante) é exercido à margem da legalidade, de forma arbitrariamente seletiva, porque a própria lei assim o planifica e porque o orgão legislativo deixa fora do discurso jurídico-penal amplíssimos âmbitos de controle social punitivo. (ZAFFARONI, 1991b, p. 25)
- “A legalidade nem mesmo é respeitada no âmbito do sistema penal formal 2”
Diante da enorme disparidade entre a programação legislativa e a capacidade operacional dos órgãos do sistema penal, o autor assinala que este se encontra estruturalmente montado para que a legalidade processual jamais seja respeitada e para que seu poder seja exercido com “altíssimo grau de seletividade, dirigida, naturalmente, aos setores mais vulneráveis” (ZAFFARONI, 1991b, p. 26).
A impossibilidade absoluta de criminalizar todas as condutas criminosas, conforme a programação legislativa revela que “o sistema penal é um verdadeiro embuste, pretende dispor de um poder que não possui, ocultando o verdadeiro poder que exerce” (ZAFFARONI, 1991b, p. 26).
Por outro lado, o sistema penal formal também viola a legalidade penal. Por vários motivos:
Os tipos penais nascidos da incontrolada e desordenada ‘inflação’ de normas penais podem carecer de adequada técnica legislativa, o que dá lugar para que muitos deles sejam ‘abertos’ (ou melhor, ‘difusos’), com grave lesão para as garantias de legalidade e reserva. As detenções sem prazo, fundadas nas faculdades de emergência, tendem a transformarem-se em crônicas, dando lugar a um desequilíbrio na divisão dos poderes estatais, porque de fato e de direito são penas impostas por tempo indeterminado pelos poderes executivos. (ZAFFARONI, 1982, p. 77)
- “O exercício de poder abertamente ilícito por parte do sistema penal”
Por último, a deslegitimação dos sistemas penais latinoamericanos pelos próprios fatos deve-se também a seu “violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade” (ZAFFARONI, 1991b, p. 28).
Exemplo disso são as punições ilícitas exercidas por pessoas alheias ao sistema penal ou pertencentes aos próprios órgãos do sistema penal, conforme já analisado.
Toda essa violência, característica da operatividade de nossos sistemas penais, leva o autor a defender a imperiosa necessidade de formulação de um saber criminológico
que nos permita explicar como operam os controles sociais punitivos de nossa margem periférica, que condutas e atitudes promovem, que efeitos provocam e como os encobre enquanto isso seja necessário ou útil para projetar alternativas para as soluções punitivas ou soluções punitivas alternativas menos violentas que as existentes e mais adequadas ao progresso social. (ZAFFARONI, 1988, p. 20)
Partindo dessa constatação, em Em busca das penas perdidas (1991b), ZAFFARONI elabora o “Realismo Marginal”.
Tal modelo surge da necessidade de uma resposta marginal à deslegitimação do sistema penal. Responder à deslegitimação do sistema penal, para ZAFFARONI (1991b, p. 155), “significa encontrar uma resposta que contribua para diminuir a violência atual, quebrando sua curva ascendente”.
Neste sentido, o autor revela-se “otimista”:
acreditamos ser possível reduzir os níveis de violência, salvar muitas vidas, evitar muita dor inútil, e, finalmente, fazer o sistema penal desaparecer um dia, substituindo-o por mecanismos reais e efetivos de solução de conflitos. (ZAFFARONI, 1991b, p. 159)
Assim, ZAFFARONI deixa clara sua posição abolicionista, embora considere que, enquanto esta “utopia” não se realiza, faz-se necessária a elaboração de uma resposta à deslegitimação do sistema penal para conter sua violência punitiva.
A resposta para a violência do sistema penal que o autor pretende elaborar abrange uma tríplice dimensão: a dimensão criminológica, a político-criminal e a jurídico-penal.
Na dimensão político-criminal, objeto do presente artigo, ele desenvolve algumas estratégias e táticas para a redução do violento exercício de poder do sistema penal e sua substituição por formas mais eficazes de resolução dos conflitos.
A primeira tática seria a da substituição do discurso produzido pelas instâncias reprodutoras da ideologia do sistema penal por um discurso contrário à violência. Nesse sentido “é fundamental a neutralização do aparelho de propaganda violenta do sistema penal, ou seja, a introdução de mensagens diferentes nos meios de comunicação de massa” (ZAFFARONI, 1991b, p. 175).
Uma segunda tática implicaria submeter as notícias difundidas pelos meios de comunicação a um controle técnico, visando evitar as “metamensagens reprodutoras ou instigadoras públicas de violência, de delito, de uso de armas, de condutas suicidas ou de consumo de tóxicos” (ZAFFARONI, 1991b, p. 175).
A última e mais importante tática de resposta à deslegitimação do sistema penal é a da intervenção mínima, acompanhada de um processo intensivo de descriminalização e de redução da pena de prisão, e limitada pelas garantias do Direito Penal liberal.
Assim:
Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça. (ZAFFARONI, 1991b, p. 106)
Dessa forma, o Direito Penal Mínimo de ZAFFARONI (1991b, p. 06) possui uma ética básica de valorização da vida humana, pautada na reconstrução das garantias fundamentais e encontrando nos Direitos Humanos seu fio condutor.
2 O Minimalismo Penal
Para ZAFFARONI, a recuperação das garantias dos Direitos Humanos pelo programa de Direito Penal Mínimo é imperiosa, pois, segundo ele, os resultados das pesquisas que demonstram a deslegitimação do sistema penal revelam que este viola abertamente os Direitos Humanos. Tal violação é oriunda não só da violência operacional do exercício de poder punitivo em nossos sistemas penais periféricos como também de todos os sistemas penais, constituindo-se em fruto de suas características estruturais. “Em resumo, o exercício de poder dos sistemas penais é incompatível com a ideologia dos direitos humanos” (ZAFFARONI, 1991b, p. 147).
A constituição do sistema penal atual iniciou-se no século XII, consolidando-se no século XIX, enquanto, apesar de possuir diversas raízes e origens, a formulação dos Direitos Humanos em sua versão moderna deu-se no século XVIII, fruto do Iluminismo e como tentativa de limitar o poder soberano.
Ao invés, porém, de ter seu poder limitado, o sistema penal conseguiu aumentá- lo através da proliferação das agências policiais nos séculos XVIII e XIX, que exercem o mais importante poder do sistema penal: o positivo e o configurador (ZAFFARONI, 1991b, p. 152).
Entretanto, na opinião do autor, os Direitos Humanos não representam uma utopia, mas “um programa de longo alcance de transformação da humanidade” (ZAFFARONI, 1991b, p. 149).
Por apresentar-se como um programa, significa algo que se deve realizar e não algo já realizado, pois:
A pretensão de que os Direitos Humanos estão realizados não passa de uma tentativa de colocá-los ‘ao contrário’ e, conseqüentemente neutralizar seu potencial transformador. (ZAFFARONI, 1989, p. 440)
Ao comparar-se o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem – segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” – com a consagração da desigualdade expressa na seletividade do sistema penal, constata-se a contradição entre os Direitos Humanos e tal sistema. E é por isso que os dispositivos dos Direitos Humanos sempre buscaram limitar e conter o exercício de poder do sistema penal.
Assim:
A necessidade e a urgência de uma resposta fundada na deslegitimação do sistema penal se impõe também, a partir da perspectiva do programa transformador que os direitos humanos implicam, particularmente em nossa localização no mapa do poder planetário, onde o caminho progressivo até a realização dos direitos humanos é muito claramente submetido a interrupções abruptas e onde o exercício de poder do sistema penal constitui a peça chave do extermínio brutal. (ZAFFARONI, 1991b, p. 153)
Como uma das instâncias de legitimação do sistema penal, o discurso jurídico- penal ZAFFARONI (1991b, p. 253) considera imprescindível para a contenção da violência do sistema penal a modificação do discurso jurídico-penal, sobre as bases de um direito humanitário.
As garantias penais contidas no discurso jurídico-penal devem representar um limite à violência do sistema penal, ao invés de serem vistas apenas como princípios que o sistema deveria respeitar, mas que na realidade, viola.
Portanto:
O que se deve pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue todos os seus esforços de forma a reduzir cada vez mais, até onde o seu poder permitir, o número e a intensidade destas violações, operando internamente em nível de contradição com o próprio sistema, a fim de obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis reais de realização operativa desses princípios. (ZAFFARONI, 1991b, p. 235)
Dessa forma, a agência judicial possui papel fundamental na estratégia de contenção da violência do sistema penal, pois deverá decidir, em cada caso submetido à sua apreciação, conforme uma regra denominada pelo autor argentino de “mínima violação/máxima realização” das garantias penais.
Assim:
Da perspectiva de um discurso jurídico-penal pautado no realismo marginal, entende-se por garantias penais o compromisso das agências judiciais penais para exercer seu poder de modo a decidir cada caso conforme a regra de ‘mínima violação/máxima realização’ dos princípios que servem para limitar a irracionalidade (violência) do exercício de poder do sistema penal, configurando deste modo um ‘padrão’ – provisório, por ser progressivo e ‘aberto’, ou ‘inacabado’ – de máxima irracionalidade (violência) tolerada (porque a agência judicial carece de poder para impor um menor). (ZAFFARONI, 1991b, p. 236)
Neste sentido, ZAFFARONI (1991a, p. 232 e 1991b, p. 222-225) compara a deslegitimação do sistema penal com a deslegitimação da guerra3, demonstrando que o papel da agência judicial no sistema penal é o mesmo desempenhado pela Cruz Vermelha Internacional, que, apesar de não possuir o poder de acabar com a guerra, procura evitar seus piores efeitos e busca contê-la dentro dos limites do seu poder.
À medida que as decisões das agências judiciais se pautarem pela regra de “mínima violação/máxima realização” dos princípios penais, elas irão construindo “padrões” que avançarão na direção da redução da violência. A fim de propiciar o avanço dos padrões, os princípios penais limitadores da violência, portanto, não devem ser considerados estáticos, mas “abertos” ou “inacabados” (ZAFFARONI, 1991b, p. 237).
Segundo o autor, essa é a forma de progredir sempre mais na limitação da violência e exige um papel crítico do discurso jurídico-penal para com os padrões alcançados pelas agências judiciais.
Portanto:
A única forma de se manter esta progressividade da limitação repressiva e de fazer com que os princípios penais permaneçam sempre ‘abertos’ ou ‘inacabados’ consiste em sustentar um certo grau de contradição entre o discurso jurídico-penal da agência de reprodução ideológica e o padrão obtido pelas agências judiciais. (ZAFFARONI, 1991b, p. 237)
Tais princípios, baseados nas garantias penais e nos Direitos Humanos, não são inacabados somente na realização, mas em sua enunciação e catalogação, à medida que a complexidade e a dinâmica dos conflitos na sociedade implicam o surgimento de novos princípios (ZAFFARONI, 1991b, p. 238).
3 Princípios de Direito Penal Mínimo
Os princípios penais fundamentais de ZAFFARONI classificam-se em três categorias que englobam vários outros princípios.
Na primeira, encontram-se os “Princípios para a Limitação da Violência por Carência de Elementaríssimos Requisitos Formais”; na segunda, os “Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Pressupostos de Disfuncionalidade Grosseira para os Direitos Humanos”; e, na terceira, os “Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Qualquer Pretensão de Imputação Pessoal em Razão da sua Notória Irracionalidade”. Tais princípios serão estudados a seguir.
3.1 Princípios para a Limitação da Violência por Carência de Elementaríssimos Requisitos Formais
3.1.1 Princípio de reserva legal ou de exigência máxima de legalidade em sentido estrito
Este princípio impõe a máxima realização e a mínima violação da legalidade das penas e de todos os seus pressupostos – devido processo legal, contraditório, idoneidade das provas etc.
Isso significa que a agência judicial deve recuperar para si toda forma de punição encontrada no sistema penal e submeter sua aplicação ao mais estrito cumprimento do princípio da legalidade.
Como o Estado Moderno reserva para si o direito à punição, com esse princípio todas as formas punitivas estariam enquadradas no requisito da legalidade.
Assim:
O princípio de legalidade, muitas vezes entendido como ‘tipo-garantia’, não pode ter outro fundamento que a necessidade de limitar a violência seletiva do poder penal. É uma espécie de ‘direito penal mínimo’ hoje consagrado quase que universalmente e que se tratou de racionalizar, limitar e burlar das mais diversas formas. (ZAFFARONI, 1991b, p. 250)
3.1.2 Princípio de máxima taxatividade
Sob a égide deste princípio ficam proibidos todos os tipos penais abertos e em branco, as escalas penais indeterminadas para duração da pena e as punições administrativizadas – instâncias que, por não possuirem limites certos e serem passíveis de várias construções, possibilitam a violação do princípio da legalidade.
O princípio da máxima taxatividade também proíbe o emprego da analogia na interpretação da lei penal.
3.1.3 Princípio da irretroatividade
O princípio da irretroatividade surge como consequência do princípio da legalidade, pois não se pode punir uma conduta que, não estando prevista na lei penal, não possibilita a seu autor o conhecimento prévio da proibição nem da pena cominada à sua violação.
3.1.4 Princípio da máxima subordinação à lei penal substantiva
Este princípio impõe a subordinação de qualquer lei, decreto, regulamento, acórdão etc. – seja no campo processual, seja no executivo ou administrativo, e que implique limitação de direitos – aos requisitos exigidos pela lei penal para sua imposição.
Como já mencionado, para ZAFFARONI é exatamente neste campo, externo ao sistema penal formal, que são encontradas as principais formas de violência. O fato de estas agências disporem de alto grau de discricionariedade abre espaço para a ocorrência de muitas arbitrariedades no seu exercício de poder.
Assim, o autor postula a submissão do exercício do poder punitivo dessas agências ao controle e limite do Direito Penal, a exemplo das prisões preventivas, dos delitos contravencionais, das prisões administrativas etc.
3.1.5 Princípio de representação popular
De acordo com este princípio, as leis penais só podem ser elaboradas pelo poder legislativo, previsto pela Constituição e com representação popular.
Dessa forma:
As leis penais ‘de direito’ ou ‘de fato’ somente serão reconhecidas na medida em que beneficiem o criminalizado ou o candidato à criminalização, e sempre que tal benefício não tenha resultado de uma ação calculada dos usurpadores do poder legítimo a fim de se beneficiar ou a seus aliados circunstanciais. (ZAFFARONI, 1991b, p. 240)
3.2 Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Pressupostos de Disfuncionalidade Grosseira para os Direitos Humanos
Esta categoria de princípios é direcionada para a orientação da aplicação da lei penal pelas agências judiciais (CERVINI, 1993, p. 94).
3.2.1 Princípio da limitação máxima da resposta contingente
Este princípio impõe ao juiz uma análise crítica das disposições legislativas e a negação da sua aplicação, quando elas não resultarem de amplos debates públicos com a consulta de técnicos especializados e com uma pesquisa político-criminal.
O princípio da limitação máxima da resposta contingente visa evitar, portanto, a aplicação de leis demagógicas que atendam a interesses de pequenos grupos de pressão ou a propagandas publicitárias. Nesses casos, o que a agência judicial deve fazer é declarar a inconstitucionalidade dessas leis e abster-se da sua aplicação.
3.2.2 Princípio de lesividade
A imposição da pena só deve ocorrer quando houver um bem jurídico afetado. Pois, segundo o autor, a pena imposta como consequência de uma ação que não afetou o direito de alguém é uma “aberração”. Este princípio exige como condição para a resposta punitiva a lesão ou o perigo concreto de lesão de algum bem jurídico.
Portanto:
A necessidade de um bem jurídico afetado apresenta-se, em verdade, como outro limite máximo de irracionalidade tolerada, que não pode ser ultrapassado sem que se caia no absurdo total: admitir a intervenção do sistema penal quando não há conflito, ou quando o conflito é gerado sem que o direito de alguém seja afetado, mas somente seus valores, gostos ou opiniões. (ZAFFARONI, 1991b, p. 255)
3.2.3 Princípio da mínima proporcionalidade
A pena não deve ser admitida para punir um fato insignificante ou de lesividade mínima (princípio da insignificância).
Apesar do seu caráter irracional, a pena não pode ultrapassar o limite do intolerável, sendo aplicada em casos de lesividade mínima, ou excedendo de forma grosseira a proporcionalidade ao dano causado pela conduta delitiva.
3.2.4 Princípio do respeito mínimo à humanidade
Segundo este princípio, o juiz deve prescindir da pena ou aplicá-la de forma mínima, quando esta, na sua previsão abstrata ou nas circunstâncias concretas, repugnar aos mais elementares sentimentos de humanidade. Em outras palavras, quando implicar uma lesão gravíssima para a pessoa ou quando os efeitos e o sofrimento quanto ao ato praticado tornarem sua aplicação desnecessária.
Para ZAFFARONI este é um fato juridicamente admissível e obedece aos princípios constitucionais.
3.2.5 Princípio de idoneidade relativa
A intervenção penal não serve para solucionar os conflitos, mas para reprimi-los. Não se pode, portanto, admitir que o legislador pretenda responder às demandas conflituais de uma forma grosseira.
Neste sentido, o princípio de idoneidade relativa impõe aos juízes que pressionem o Poder Legislativo para que este não tente “desembaraçar-se” dos conflitos com soluções simbólicas, que ocultam os conflitos ao invés de oferecer-lhes alternativas de solução.
3.2.6 Princípio limitador da lesividade à vítima
Desde os séculos XII e XIII, a vítima foi excluída como sujeito no processo penal e substituída por um representante do soberano ou do Estado. ZAFFARONI (1991b, p. 184) considera essa passagem histórica como uma expropriação irreversível do direito da vítima.
A vítima de um delito, portanto, acaba invariavelmente prejudicada, resultando inadmissível que a agência judicial, além deste prejuízo estrutural, permita a intervenção penal quando esta acarretar maiores prejuízos para a vítima – como o sofrimento decorrente de uma intervenção contrária à sua vontade, por exemplo.
3.2.7 Princípio de transcendência mínima da intervenção punitiva
Apesar do princípio constitucional de pessoalidade das penas, a intervenção penal acaba sempre transcendendo a pessoa do condenado e afetando o grupo ao qual pertence. Um exemplo são o contágio e a generalização das etiquetas que, segundo ANIYAR DE CASTRO (1983, p. 106), acompanham toda a família do criminalizado. Para ZAFFARONI (1991b, p. 243), “ninguém pode evitar esta transcendência, a não ser mediante a supressão da pena”.
A agência judicial, porém, deve procurar exercer seu poder de modo a que a pena não ultrapasse seu nível normal de transcendência, contendo ao máximo a violência irracional que afete a terceiros.
3.3 Princípios para a Limitação da Violência por Exclusão de Qualquer Pretensão de Imputação Pessoal em Razão da sua Notória Irracionalidade
Estes princípios encontram-se conectados com a concepção de ZAFFARONI (1991b, p. 243) sobre a Teoria do Delito “como um conjunto de limites que a agência judicial deve comprovar não violados, a fim de que possa dar vez às consequências penais”.
Assim, o autor acresce aos princípios acima estudados os conceitos de tipicidade, antijuricidade e culpabilidade como limites à violência do sistema penal.
Dessa forma desenvolve-se o conceito de culpabilidade de maneira original e particular, rechaçando qualquer espécie de culpabilidade em razão de características pessoais do criminalizado, conforme ocorre com a noção de periculosidade.
O sistema penal, por meio de suas agências policiais, elege alguns candidatos à criminalização e submete-os à decisão da agência judicial. Esta deverá, segundo ZAFFARONI (1991b, p. 248), limitar a irracionalidade da violência seletiva, pautando suas decisões em critérios objetivos e diversos dos que possibilitam a ação seletiva dos outros órgãos do sistema penal.
Assim:
Para que esta exigência de dados objetivos resulte minimamente racional, tais dados devem ser selecionados de acordo com algum fundamento antropológico ou, pelo menos, não recusar uma base antropológica; por isso, não deve tomar como dados limitadores ou reguladores outras coisas que não sejam uma conduta ou ação do criminalizado. Qualquer outro dado resultaria contrário ao conceito de homem como pessoa e, por conseguinte, claramente antijurídico. (ZAFFARONI, 1991b, p. 249)
Devido à exigência de requisitos para a criminalização fundados na conduta ou na ação do criminalizado, resulta deslegitimado o conceito de culpabilidade normativa com base na reprovação personalizada.
Essa deslegitimação é fruto da própria deslegitimação do sistema penal, principalmente quando é evidente sua seletividade.
Portanto:
A seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo?, são perguntas que a reprovação normativa não pode responder. (ZAFFARONI, 1991b, p. 259)
Alguns limites que a culpabilidade pela reprovação impõe à criminalização – como a inexigibilidade de conduta diversa por impossibilidade de compreensão do antijurídico ou por incapacidade de autodeterminação – devem, porém, continuar a ser respeitados, embora acrescidos de mais um limite à culpabilidade, para que esta permaneça dentro do máximo de racionalidade aceitável: “a culpabilidade pela vulnerabilidade” (ZAFFARONI, 1991b, p. 270).
A “vulnerabilidade” é o risco de ser selecionado pelo sistema penal e pode ser medida em “níveis” conforme a “situação” de risco em que se tenha colocado a pessoa. A situação de vulnerabilidade é gerada por “fatores de vulnerabilidade” que podem ser divididos em dois grupos: “posição ou estado de vulnerabilidade” e “esforço pessoal para a vulnerabilidade”.
A “posição ou estado de vulnerabilidade” é socialmente condicionado, ou seja, algumas pessoas – em função de sua classe social, cor, preferências sexuais etc. – estão mais vulneráveis à seleção do sistema penal para serem criminalizadas. Este fator é “incobrável”: a agência judicial não pode decidir em função do estado ou posição de vulnerabilidade (ZAFFARONI, 1991b, p. 270).
Por outro lado, o “esforço pessoal para a vulnerabilidade” implica a autodeterminação da pessoa de colocar-se em risco de ser selecionada pelo sistema penal em função de um comportamento particular e, neste sentido, pode ser cobrado pela agência judicial. ZAFFARONI (1991b, p. 271) chega a afirmar, inclusive, que os fatores de esforço pessoal para a vulnerabilidade “são os que constituem a essência da contribuição dada pela pessoa para sustentar o exercício de poder que a seleciona e criminaliza”.
E este é o limite do poder redutor da violência do sistema penal que as agências judiciais possuem, pois não podem negar-se a criminalizar uma conduta que, além de apresentar os requisitos legais para a criminalização, foi realizada por uma pessoa que despendeu um esforço para tornar-se vulnerável.
Assim, a posição ou estado de maior vulnerabilidade dará origem a um baixo nível de culpabilidade, na medida em que a agência judicial deverá agir de forma a reduzir a violência seletiva baseada em estereótipos de criminosos.
Por fim, deve-se sempre levar em conta que a culpabilidade pela vulnerabilidade não pode nunca ultrapassar os limites da autonomia da vontade impostos pela culpabilidade baseada na reprovação, pois se trata do limite máximo da violência tolerável, o qual “é alimentado e sustentado por todos os anteriores limites ou requisitos limitadores” (ZAFFARONI, 1991b, p. 271).
Conclusão
Seletividade associada à arbitrariedade faz dos sistemas penais atuais, principalmente na América Latina, um exercício de poder altamente violento e transgressor dos Direitos Humanos e das garantias jurídicas do Estado de Direito, consubstanciadas nas leis constitucionais, penais e processuais penais. Ou seja, um exercício de poder deslegitimado que se manifesta como violência inútil.
A política criminal aqui estudada parte de tal noção de deslegitimação do sistema penal e busca alternativas para os efeitos funestos deste exercício de poder violento em curto e médio prazos, buscando a preparação para uma futura abolição do controle social punitivo institucionalizado como forma de resolução dos conflitos.
O Realismo Marginal Criminológico de EUGENIO RAÚL ZAFFARONI constitui-se em um saber voltado para os sistemas penais latinoamericanos, considerando que nossa situação de dependência em relação aos países do capitalismo central imprime em nossos sistemas penais características operacionais de maior violência e um mais alto grau de violação dos Direitos Humanos. A deslegitimação dos sistemas penais na América Latina deve-se, sobretudo, à evidência dos fatos, principalmente do fato “morte”.
A resposta à deslegitimação do sistema penal, portanto, significa a busca de uma forma de contenção da violência desse sistema através da sua urgente redução, pois a demora nessa redução conta-se com mortes.
Subscrevendo o ideal abolicionista em longo prazo, o Realismo Marginal Criminológico consubstancia-se em uma resposta imediata para a deslegitimação do sistema penal e a sua dimensão político-criminal constitui-se nos princípios limitadores da violência punitiva.
A principiologia do autor visa à contração do sistema penal, por meio da recuperação das garantias jurídicas fundamentais e do respeito aos Direitos Humanos.
A implementação dos princípios minimalistas significa a contração da intervenção punitiva com a consequente contenção da sua violência. A aplicação da pena somente em último caso, bem como a tolerância em relação a uma série de condutas que não constituam grave lesão para os Direitos Humanos, implicaria um processo vasto e necessário de descriminalização e despenalização, obstaculizando os efeitos perversos e inúteis da criminalização e da prisão.
O Minimalismo Penal proporciona uma inversão na lógica intervencionista do sistema penal, passando por uma conscientização de todos os seus operadores e de toda a sociedade, no sentido de ceder maior espaço para as diversidades e de procurar formas mais democráticas e criativas para a real solução dos conflitos e não somente para a sua repressão.
Para tanto, faz-se necessário levar o debate sobre a deslegitimação do sistema penal e a necessidade de contenção da violência do seu exercício de poder às universidades, meios de comunicação, associações de magistrados e promotores e aos responsáveis pela elaboração e execução das leis penais.
Enfim, o Minimalismo Penal revela-se como um empreendimento radical de transformação do sistema penal e da sociedade, propiciando a possibilidade de algum dia prescindirmos de um controle social punitivo institucionalizado.
Notas
1 Ver também, a respeito: ANDRADE (1994a, p. 434-442).
2 Sistema penal formal é, para ZAFFARONI, o encarregado do exercício de poder repressivo: deter, processar e condenar.
3 A analogia do sistema penal com a guerra – ambos considerados um exercício desligitimado de poder – é reiteradas vezes utilizada pelo autor no sentido de demonstrar que as agências judiciais, mesmo frente a um sistema penal deslegitimado, podem exercer um papel de controladoras dos efeitos nocivos desse sistema.
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