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O Direito ao desenvolvimento integral em face da política nacional de resíduos sólidos

O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO INTEGRAL EM FACE DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS

 

RIGHT TO FULL DEVELOPMENT IN FACE OF THE BRAZILIAN NATIONAL POLICY OF SOLID WASTE

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VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA

Pós-Doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de Direito Internacional da PUC/SP. Ex- Coordenador do Mestrado e Ex-Diretor do Centro de Pesquisa em Direito da UNINOVE (2010-2016), onde também foi Professor de Direitos Humanos na Graduação. Foi presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI (2009-2013). Advogado

ANA CAROLINA SOUZA FERNANDES

Mestre em Direito com Ênfase em Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-graduada em Direito dos Contratos e Direito Societário (L.LM) pelo Insper – Instituição de Ensino e Pesquisa. Pós-graduada em Direito Civil pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Bacharel em Direito pela FADISP. Advogada.

 

RESUMO

A sociedade contemporânea está em constante transformação. Direitos individuais eram outrora considerados absolutos e intocáveis. Com o passar do tempo, outros direitos foram surgindo e compatibilizando com estes primeiros, tais como os direitos sociais, o direito ao desenvolvimento e, até mesmo, o direito ambiental. Dito isso, o presente artigo tem  como enfoque, por meio de uma metodologia dedutiva e a partir de análises legislativas e doutrinárias, tratar da análise dos direitos difusos dentro dos direitos humanos, da teoria do desenvolvimento integral e da chamada responsabilidade compartilhada, para que se possa verificar de que forma a Política Nacional de Resíduos Sólidos contribuiu – ou se ainda contribui – para incutir na população a ideia de cidadania empresarial, tendo em vista a importância, in casu, do meio ambiente para essa e futuras gerações.

PALAVRAS-CHAVE: Direito ao Desenvolvimento Integral; Política Nacional do Meio Ambiente; Resíduos Sólidos; Direito Internacional dos Direitos Humanos; Triple Bottom Line; Processo de Dinamogenesis.

 

ABSTRACT

Contemporary society is constantly changing. Individual rights were once considered absolute and untouchable. Over time, other rights were counterbalanced with those individual rights, such as social rights, right to development and even environmental rights. That said, this article focuses, through a deductive methodology and on the basis of legislative and doctrinal analysis, to address the defense of these diffuse rights within the human rights context, the theory of full development and the so- called shared responsibility, so that it can be verified if the Brazilian National Policy of Solid Waste has contributed – or if it still contributes – to instilling in the population the idea of corporate citizenship, considering the importance, in casu, of the environment for this and future generations.

KEYWORDS: Right of Full Development. Brazilian National Environmental Policy. Solid Waste. International Rights of Human Rights. Triple Bottom Line. Dinamogenesis Process.

 

INTRODUÇÃO

A sociedade está em constante mutação de valores. Se outrora a liberdade era considerada valor absoluto, a igualdade foi posteriormente sonhada e reivindicada, de certa forma, como freio e contrapeso àquela. Depois disso, emerge ainda na sociedade a necessidade da solidariedade, na qual aparecem os chamados direitos difusos. Esses parâmetros valorativos são parte de um processo histórico, tendo como raiz pedagógica a famosa tríade da Revolução Francesa no Século XVIII Liberté, Igualité e Fraternité, expressando paulatinamente novas características de cidadania e substituindo a célebre frase l’Etat, c’estmoi de Luís XIV. Na seara dos direitos humanos é o que se convencionou chamar de processo de dinamogenesis.

No plano privado, tais valores resultaram em novas formas de se pensar o Direito, notadamente quando se trata de atividade econômica. O direito de propriedade, por exemplo, que era amplamente assegurado deu espaço ao princípio da função social; da mesma forma, o pacta sunt servanda, aos poucos, vem sendo interpretado em compatibilidade com outros valores em decorrência da aplicação de princípios de direito com as quais a chamada “força obrigatória” dos contratos coexiste. Adicionalmente, a noção de que a atividade empresarial deveria se preocupar tão somente com o lucro vem sendo substituída pelo entendimento de que as empresas também devem ser corresponsáveis, sobretudo e necessariamente em se tratando de questões socioambientais. Neste contexto se desenvolve a teoria do triple bottom line, ou seja, o tripé de sustentabilidade (que envolve aspectos socioeconômicos ambientais). A legislação brasileira busca refletir tais anseios e preocupações da sociedade – inclusive internacional. A despeito de outras legislações ambientais, podemos citar a edição da Lei n. 12.305, de 02 de agosto de 2010, que implementou não só a Política Nacional de Resíduos Sólidos (“Política”), mas também inovou, introduzindo a ideia da responsabilidade compartilhada.

Assim, o presente artigo tem como objetivo, por meio do método dedutivo e de análises legislativas e doutrinárias, tratar das questões aqui mencionadas, a saber: (i) a solidariedade e os direitos difusos; (ii) a teoria do desenvolvimento integral; e (iii) responsabilidade compartilhada, de modo a se verificar de que forma referida Política contribuiu – ou ainda contribui – para enraizar e garantir a cidadania empresarial.

 

2   A SOLIDARIEDADE E A TUTELA DOS DIREITOS DIFUSOS

 Não se olvida que o processo de dinamogenesis1 está diretamente relacionado às condições da evolução social e, consequentemente, do ordenamento jurídico. Isto é, certos direitos e garantias fundamentais se desenvolvem a partir de um determinado cenário e, consolidando-se como um valor para determinada sociedade, é absorvido pelo Direito, ou seja, é transformado em norma. Assim, nos dizeres de Vladmir Oliveira da Silveira e Maria Mendez Rocasolano (ROCASOLANO; SILVEIRA, 2010, p. 191),

 a dinamogenesis (…) refere-se ao processo continuado no qual os valores estão imersos e que pode resumir-se nas seguintes etapas: 1) conhecimento-descobrimento dos valores pela sociedade; 2) posterior adesão social aos valores e a consequência imediata; e 3) concretização dos valores por intermédio do direito em sua produção normativa e institucional.

1 “A dinamogenesis explica o processo que fundamenta o nascimento e desenvolvimento de novos direitos no decorrer da história. Tal modelo corresponde ao segundo tipo de ideologia de interpretação jurídica de Wróblewski, a chamada ideologia dinâmica da interpretação jurídica – interpretação esta entendida como atividade de adaptação do direito às necessidades presentes e futuras da vida social” (ROCASOLANO; SILVEIRA, 2010, p. 185).

Observa-se, no entanto, que não há que se falar em supressão ou substituição de direitos, mas complementação, o que levou Willis Santiago Guerra Filho (GUERRA FILHO, 2005, pp. 46-47) a proferir os seguintes ensinamentos:

[…] ao invés de gerações é de se falar em dimensões de direitos fundamentais, neste contexto não se justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos gestados em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos de geração sucessiva, assumem outra dimensão, pois os direitos da geração mais recente tornam- se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada – e, consequentemente, também para melhor realizá-los.

 

O exposto corrobora o entendimento já apresentado no introito deste artigo, no sentido de que o direito de propriedade, por exemplo, considerado dentro de uma perspectiva histórica dos direitos de primeira dimensão, era quase que absoluto. A partir do momento em que outros valores foram adotados pela sociedade, referido direito precisou ser compatibilizado com outro paradigma, sob a justificativa de observância de uma função social, resultado do nascimento dos direitos de segunda dimensão. E, posteriormente, esse mesmo direito de propriedade, a partir do conteúdo dos direitos de terceira dimensão, passou a ter de obedecer a uma função solidária, como por exemplo, a ambiental 2.

Vale dizer que as dimensões dos direitos fundamentais (ou dos direitos humanos, se analisados sob o prisma do ordenamento jurídico internacional), via de regra, podem ser consideradas uma quebra de paradigma, ou, até mesmo, uma ruptura axiológica. Senão vejamos.

2 É o que determina o artigo 1.228, § 1° do Código Civil de 2002: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

A busca pela liberdade surge a partir do momento em que os cidadãos passaram a repudiar os modelos feudais e absolutistas, caracterizados pela privação e abusos de direitos. Assim, “buscou-se ampliar o conceito de liberdade, que foi completamente tolhida dos indivíduos no Estado absolutista. Por tal razão, a liberdade (direito de primeira geração) abrangia não somente a liberdade individual, mas também liberdades econômicas, religiosa, política, dentre outras” (FERNANDES, 2014, p. 83). É a defesa da liberdade em seu sentido mais amplo e do absenteísmo estatal, principalmente no domínio particular, ou, por outra, da defesa das chamadas “liberdades públicas negativas”.

O Estado, portanto, desprovido de atribuições constitucionais de solução de distorções econômicas e até mesmo para mediar relações privadas, se viu paralisado diante de graves crises econômicas (tal como a Grande Depressão de 1929) e suas consequências para a sociedade. Celso Ribeiro Bastos (BASTOS, 1999, p. 142) leciona que:

A causa mais importante – e portanto não a única – foi sem dúvida a ocorrência no século XX de crises econômicas que, provocando a recessão e o desemprego, demonstravam ser os mecanismos auto-reguladores da economia insuficientes para promover harmonicamente o desenvolvimento da riqueza nacional. A presença do Estado se fazia, pois, imprescindíveis para corrigir os profundos desequilíbrios a que foram levadas as sociedades ocidentais que não disciplinavam a sua economia por meio de um planejamento centralizado, como se dava nos países comunistas.

E assim, diante deste cenário, surgem os direitos de segunda geração “que demandam atuações do Estado voltadas ao atendimento de condições mínimas de dignidade na vida humana” (SILVEIRA; CONTIPELLI, 2008, p. 2575). Em contraponto às liberdades públicas negativas, o Estado passou a ser um agente mais ativo, seja por meio de intervenções na economia, seja por meio de elaboração eimplementação de políticas públicas (prestações positivas). Visava-se a proteção de direitos sociais, tal como esclarece Daniel Sarmento (SARMENTO, 2006, p. 19), a respeito dessa novageração:

[…] trazem em seu bojo novos direitos que demandam uma contundente ação estatal para sua implementação concreta, a rigor destinados a trazer consideráveis melhorias nas condições materiais de vida da população em geral, notadamente da classe trabalhadora. (…). Surge um novíssimo ramo do Direito, voltado a compensar, no plano jurídico, o natural desequilíbrio travado, no plano fático, entre o capital e o trabalho. O Direito do Trabalho, assim, emerge como um valioso instrumento vocacionado a agregar valores éticos ao capitalismo, humanizando, dessa forma, as até então tormentosas relações jus laborais. No cenário jurídico em geral, granjeia destaque a gestão de normas de ordem pública destinadas a limitar a autonomia de vontade das partes em prol dos interesses da coletividade.

Por fim, os direitos de terceira geração, quando de seu surgimento a partir da criação da Organização das Nações Unidas, não tinham como destinatário um indivíduo ou determinada categoria de indivíduo, mas a coletividade, o gênero humano, ou, por outra, os direitos difusos3, na qual, para fins do presente artigo, nos interessa apenas o direito ao meio ambiente saudável4, este último consagrado em nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225.

Vale ressaltar que esses direitos ultrapassam fronteiras domésticas para alcançar uma magnitude internacional “inaugurando uma perspectiva de cooperação internacional, na qual o Estado Nação se transforma em Estado Constitucional Cooperativo” (SILVEIRA; CONTIPELLI, 2008, p. 2576). E a característica mais marcante desse novo modelo de Estado, como o próprio nome sugere, é o sentimento de solidariedade em prol do bem comum.

3 Nos termos do artigo 81, parágrafo único, inciso I do Código de Defesa do Consumidor, consideram- se interesses ou direitos difusos, aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Por tal razão, é que se passou a considerar a proteção de tais direitos como tutela da solidariedade (fraternidade).
4 Reconhecimento este feito, inclusive, em sede de Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal, sob a Relatoria do Ministro Celso de Mello: “(…). Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um típico direito de terceira geração (CF, art. 225, caput)” (Supremo Tribunal Federal. RE 134297/SP. Relator Celso de Mello. Julgado em 13 de junho de1995).

3   A ABRANGÊNCIA DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO INTEGRAL

Os direitos de terceira geração trouxeram preocupações além das coletivas, mundiais. De um lado, a mudança climática e a preocupação com a degradação do meio ambiente deixou de ser um assunto meramente doméstico, fazendo com que organismos internacionais se debruçassem sobre o assunto desde a década de 70 com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Humano, realizada em Estocolmo. De outro, o direito ao desenvolvimento, erigido como direito humano com a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986), passou a ter prioridade na política internacional.

A esse respeito, cumpre esclarecer de antemão que não se deve restringir o alcance do conceito de desenvolvimento apenas à capacidade de geração de riqueza. Incentiva-se, pois, ações coletivas e colaborativas em um contexto multidimensional (socioeconômico e ambiental), o que se convencionou denominar tripé da sustentabilidade ou triple bottom line.

Fonte: Núcleo Interdisciplinar do Meio Ambiente

A ilustração acima sintetiza a teoria formulada por John Elkington, em 1994, que argumenta que “para ser sustentável uma organização ou negócio deve ser financeiramente viável, socialmente justo e ambientalmente responsável” (CREDIDIO, online). Suas 03 (três) premissas básicas podem ser assim sintetizadas:

One is the traditional measure of corporate profit – the “bottom line” of the profit and loss account. The second is the bottom line of a company’s “people account” – a measure in some shape or form of how socially responsible an organisation has been throughout its operations. The third is the bottom line of the company’s “planet” account – a measure of how environmentally responsible it has been. The triple bottom line (TBL) thus consists of three Ps: profit, people and planet. It aims to measure the financial, social and environmental performance of the corporation over a period of time. Only a company that produces a TBL is taking account of the full cost involved in doing business 5.

Durante os primórdios dos direitos de primeira geração, a atividade empresarial era considerada saudável a partir da análise de seu balanço patrimonial e distribuição de lucros, além é claro do recolhimento regular e correto dos seus tributos. Ou, nos dizeres de Maria Christina de Almeida (ALMEIDA, 2003, p. 143),

Neste contexto [do Estado liberal], a empresa fora concebida como um ente jurídico dotado de potencialidade, para a produção e transformação de bens. Caracterizava-se pela busca de mercados e incessante lucratividade, já que, inserida num modelo de exploração capitalista, sem qualquer entendimento e/ou compromisso com a realidade social. A empresa era, portanto, uma atividade eminentemente econômica.

5 Tradução livre dos autores: “Uma delas é a medida tradicional de lucro – o bottom line corporativo da conta de lucros e perdas. A segunda leva em consideração as ‘pessoas’ – uma medida de certa forma ou grau sobre como uma empresa é socialmente responsável ao longo de suas operações. A terceira leva em consideração o ‘planeta’ – uma medida sobre o quão ambientalmente responsável uma empresa tem sido. O triple bottom line (TBL) consiste assim em três pilares: lucro, pessoas e planeta. Destina-se a medir o desempenho financeiro, social e ambiental da empresa durante um período de tempo. Apenas uma empresa que produz um TBL leva em consideração o custo total envolvido nos negócios”. Nesse sentido, ver: ELKINGTON, John. Cannibals with Forks: the Triple Bottom Line of 21st Century Business. Capstone, 1997.

A partir dos direitos de segunda geração, a atividade empresarial passou a contar com uma perspectiva social, de modo que a Constituição Federal de 1988 prescreveu, em seu artigo 170, que a ordem econômica brasileira deveria restar “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, com vistas a assegurar uma existência digna. Importante lembrar que a chamada Constituição Econômica surgiu pela primeira vez em 1934.

Mais tarde, em 2003, por meio da Emenda Constitucional n. 42, após o Brasil se comprometer mais ativa e internacionalmente com a defesa do planeta (meio ambiente), incluiu-se na Carta Magna “a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e seus processos de elaboração e prestação”, como princípio a ser observado no desenvolvimento da atividade econômica.

E quanto à proteção constitucional dos direitos de terceira geração, o artigo 225 é claro ao afirmar que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Nesse sentido, acredita-se que de uma forma estes são os primeiros sinais, a nosso ver, da responsabilidade compartilhada, na medida em que a qualidade de vida não depende tão somente do Poder Público em emanar regras de conduta (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, conforme preconiza o artigo 5°, inciso II da Constituição Federal de 1988), mas da consciência dos indivíduos e da sociedade como um todo, incluindo-se, aí, sem dúvida também o setor privado.

Neste sentido, não resta questionar a importância deste artigo, como forma de reafirmar o caráter solidário de alguns dispositivos constitucionais, ainda que voltado ao meio ambiente. Adicionalmente, é cristalina a intenção de incutir uma mudança de comportamento na sociedade, no poder público e no setor privado a respeito: (i) do irresponsável uso do meio ambiente e de seus recursos e matérias- primas e (ii) da geração de riquezas a qualquer custo, sem observância dos limites impostos pela sustentabilidade e/ou dos interesses difusos.

Assim, o selo de “sustentável” ou de “sócio-ambientalmente correto” estampado nas “vitrines” empresariais acaba por ser considerado, atualmente, um diferencial competitivo, porquanto, pelo menos na teoria, não mais se admite certos tipos de negligências corporativas, estando as empresas mais atentas aos padrões éticos do mundo contemporâneo resultante da expansão da consciência coletiva e da própria responsabilidade empresarial, em decorrência das funções sociais e ambientais da empresa.

4     A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS E A RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA

Promulgada em 02 de agosto de 2010 após longos anos de debates e como resultado de pressões internacionais e ambientalistas, a Lei n. 12.305, regulamentada pelo Decreto n. 7.404, de 23 de dezembro de 2010, instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, dispondo sobre princípios, objetivos e instrumentos, com vistas à gestão integrada e ao gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduossólidos 6.

6 Para fins do presente artigo, utilizaremos a definição de “resíduos sólidos” proposto pela referida Política, em seu o artigo 3°, inciso XVI, conforme segue: “material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”.

Com vigência indeterminada e horizonte de 20 (vinte) anos, com atualização a cada 04 (quatro) anos após consulta pública, a Política apresenta um caráter multifacetado, na qual:

contém a lei previsões de ordem programática tais como as disposições gerais sobre a responsabilidade pela efetividade das ações para sua observância, a reafirmação da necessidade de se obter uma gestão integrada de resíduos sólidos e mesmo a consagração da disponibilização de coleta adequada como mecanismo de isenção de responsabilidade, levando-nos a crer que estes sejam os instrumentos efetivos para a disciplina das ações afirmativas (SILVEIRA; FEDERIGHI, 2011, p. 315).

É, sem dúvida, um marco regulatório, introduzindo explicitamente no seio da sociedade brasileira a ideia de responsabilidade compartilhada7 pela degradação ambiental, concretizando-se como instrumento efetivo do triple bottom line. Assim, serão responsáveis pela efetividade das ações voltadas a assegurar a Política: (i) a coletividade; (ii) o setor empresarial; e (iii) o poder público. Em linhas gerais,

 

7 Nos termos do artigo 3°, inciso XVII, a responsabilidade compartilhada é o “conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos”. O artigo 30, caput possui a mesma redação. O parágrafo único completa o artigo informando que a responsabilidade compartilhada pelo ciclo do produto tem por objetivo: “I – compatibilizar interesses entre os agentes econômicos e sociais e os processos de gestão empresarial e mercadológica com os de gestão ambiental, desenvolvendo estratégias sustentáveis; II- promover o aproveitamento de resíduos sólidos, direcionando-os para a sua cadeia produtiva ou para outras cadeias produtivas; III – reduzir a geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os danos ambientais; IV – incentivar a utilização de insumos de menor agressividade ao meio ambiente e de maior sustentabilidade; V – estimular o desenvolvimento de mercado, a produção e o consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis; VI – propiciar que as atividades produtivas alcancem eficiência e sustentabilidade; e VII – incentivar as boas práticas de responsabilidade socioambiental”.

Agora o cidadão é responsável não só pela disposição correta dos resíduos que gera, mas também é importante que repense e reveja o seu papel como rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”. consumidor; o setor privado, por sua vez, fica responsável pelo gerenciamento ambientalmente correto dos resíduos sólidos, pela sua reincorporação na cadeia produtiva e pelas inovações nos produtos que tragam benefícios socioambientais, sempre que possível. O governo federal, estadual e municipais são responsáveis pela elaboração e implementação dos planos de gestão de resíduos sólidos assim como dos demais instrumentos previstos na Política Nacional que promovam a gestão dos resíduos sólidos, sem negligenciar nenhuma das inúmeras variáveis envolvidas na discussão sobre resíduos sólidos (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, online).

Aos consumidores (coletividade) cumpre: (i) o dever de efetuar adequadamente o descarte do lixo produzido e (ii) devolver os resíduos ao setor privado, após seu uso, nos postos de coletas que devem ser disponibilizados por estes; aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes (setor privado), a realização da logística reversa8; e ao poder público compete não só a atualização das políticas públicas ambientais no que concerne aos resíduos sólidos, mas também a prestação de serviços de limpeza pública urbana e o manejo dos resíduos sólidos, consoante disposto no artigo 7°9 da Lei n. 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico.

Todavia, uma das críticas que se faz à referida Política refere-se ao fato de que para que seja cumprida eficazmente há necessidade de se conhecer previamente a realidade local, seja municipal, seja estadual, sob pena de inadequação de qualquer planejamento ambiental, o que poderia resultar em mais ônus do que benefícios à sociedade 10.

8 Nos termos do artigo 3°, inciso XII, a logística reversa compreende o “instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada”.
9 Nos termos do artigo 7°, “o serviço público de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos urbanos é composto pelas seguintes atividades: I – de coleta, transborde e transporte dos resíduos relacionados na alínea c do inciso I do caput do artigo 3° desta Lei; II – de triagem para fins de reuso ou reciclagem, de tratamento, inclusive por compostagem, e de disposição final dos resíduos relacionados na alínea c do inciso I do capital do artigo 3° desta Lei; e III – de varrição, capina e poda de árvores em vias e logradouros públicos e outros eventuais serviços pertinentes à limpeza pública urbana”.

CONCLUSÃO

 Resumida e exemplificadamente, a Política tem como principais objetivos: (i) a redução de resíduos sólidos gerados; (ii) a implementação de mecanismos que visem a ampliação da reciclagem e das coletas seletivas; e (iii) a extinção de lixões e sua substituição por aterros sanitários. Ainda que voltado tão somente ao estudo da questão relativa aos resíduos sólidos, buscou-se analisar, dentre outros aspectos, a inclusão no ordenamento jurídico brasileiro da figura da responsabilidade compartilhada pela degradação do meio ambiente.

Observou-se que para alcançar as finalidades da Política cabe ao Poder Público enfrentar: (i) o desafio da degradação ambiental; e (ii) o aumento do consumo e da geração de resíduos sólidos e, consequentemente, dos ciclos naturais. No que diz respeito ao setor privado no exercício da atividade econômica, cumpre-o a tarefa de reduzir os impactos causados tanto à saúde humana quanto à qualidade ambiental como resultado do ciclo de vida dos produtos por eles utilizados na comercialização de seus produtos. E, finalmente, à coletividade (isto é, a sociedade civil) cumpre dispor corretamente os resíduos que gera.

A Política, indubitavelmente, foi um marco no sentido de distribuir a responsabilidade da proteção ambiental entre todos. Isso porque se indagava o comprometimento de todos no que concerne à educação ambiental, como também da incursão da ideia de consciência coletiva quanto à busca e garantia de um meio ambiente equilibrado e sustentável para as presentes e futuras gerações.

10 Exemplificando com o caso do fim dos “lixões” (e sua substituição por aterros sanitários), na qual a Política dispôs prazo de 4 anos para que deixassem de existir (artigo 53), mas a realidade acabou revelando-se inexequível tal prazo. Não por outro motivo que o Senado Federal aprovou prorrogação desse prazo, que passa a ser escalonado, a depender do número de habitantes de cada município, e cujas datas-limites agora são entre 2018 e 2021.

Entretanto, não se discute a necessidade de ajustes tanto legistativos quanto também culturais na Política. Ao Governo Federal compete não só traçar metas mais exequíveis, mas também iniciar urgentemente uma frente de ações educativas, além das punições; para tanto, é importante o contínuo diálogo e paralelo com os Governos estaduais e municipais.

Desta feita, entende-se, por bem, uma aliança de longo prazo entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Educação, por exemplo, para atuação em escolas e outros segmentos da sociedade. A educação ambiental é um assunto a ser tratado desde cedo. É uma cultura que deve ser incorporada no cotidiano das pessoas. Assim, nada mais importante que elaborar políticas públicas capazes de capacitar o indivíduo a tomar medidas e ações que o torne, de fato, um cidadão consciente. Há que se fortalecer, pois, o exercício da cidadania sintonizada com a sustentabilidade integral.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Christina de. A Função Social da Empresa na Sociedade Contemporânea: Perspectivas e Prospectivas. In: Argumentum – Revista de Direito da Universidade de Marília. Marília: UNIMAR, 2003, v. 3, p. 141-152.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. Editora Saraiva: São Paulo, 1999.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 11.ed. Campus: Rio de Janeiro, 1992.

CREDIDIO, Fernando. Triple Bottom Line: O Tripé da Sustentabilidade. Disponível em:                                        <http://www.institutofilantropia.org.br/component/k2/item/1607-triple_bottom_line_o_tripe_da_sustentabilidade>. Acesso em 07 de maio de 2016.

ELKINGTON, John. Cannibals with Forks: the Triple Bottom Line of 21st Century Business. Capstone, 1997.

FERNANDES, Ana Carolina Souza. O Mercado Financeiro e a Globalização: Uma Análise sob a Perspectiva da Efetividade do Direito ao Desenvolvimento. São Paulo, 2014. 221f. Dissertação (Mestrado em Direito com Ênfase em Relações Econômicas Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4.ed. São Paulo: RCS, 2005.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/política-de-resíduos-sólidos>. Acesso em 08 de maio de 2016.

ODALIA, Nilo. História da Cidadania. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2013.

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

ROCASOLANO, Maria Mendez; SILVEIRA, Vladmir Oliveira. Direitos Humanos: Conceitos, Significados e Funções. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; CONTIPELLI, Ernani. Direitos Humanos Econômicos na Perspectiva da Solidariedade: Desenvolvimento Integral. In: Encontro Nacional CONPEDI, XVI. Anais Salvador: CONPEDI, 2008, pp. 2571-2588.

                ; FEDERIGHI, Suzana Catta Preta. Política Nacional de Resíduos Sólidos e a Responsabilidade Compartilhada entre Poder Público, Setor Empresarial e Coletividade. In: Vladmir Oliveira da Silveira; Orides Mazzaroba. (Org.). Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito. 1.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 2, p. 308-330.

2021-05-12T09:57:25-03:00

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