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Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua Reconstrução Histórica

Revista Jurídica da Defensoria Pública do Tocantins

 

Ana Carolina  Souza  Fernandes 1

Vladmir Oliveira da Silveira 2

 

RESUMO

Em 10 de dezembro de 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (“DUDH”) completará 70 anos de vi­ gência. Importante frisar que esta Declaração resulta de uma experiência quedevastou a Europa após duas grandes guerras, tendo como origem a insurgência de regimes totalitários que cometeram as maiores atrocidades contra a humanidade ao aniquilar milhares de vidas inocentes. ADeclaração Universal dos Direitos Humanos serviu – e ainda serve – como diretriz para que os chamados “direitos naturais” do indivíduo sejam constantemente (re)afirmados. Todavia, o cenário geopolítico atual pende para a volta de um sentimento nacionalista, como se pode perceber em certos países europeus e nos Estados Uni­ dos. Assim, o presenteartigo pretende se debruçar nas seguin­ tes problemáticas: essa busca  incessante  pela (re)afirmação é suficiente para se caminhar em direção a uma nova ordem mundial econômica, ética e/ou política mais justa? Estariam os Direitos Humanos em um horizonte inalcançável, em um espectro retórico, posto o atual cenário geopolítico mundial, em que grande parte dos indivíduos ainda permanece excluí­ da? Para tanto, utilizou-se do método dedutivo de pesquisa e do levantamento bibliográfico e histórico como técnicade pes­ quisa, além das obras de Hannah Arendt e Celso Lafer como referenciais teóricos.

Palavras-chave: Declaração Universal dos Direitos Huma­ nos. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Dinamo­ genesis. Regimes Totalitários. Direito Constitucional. Estado Constitucional Cooperativo.

1 Mestre em Direito com Ênfase em Relações Econômicas  Internacionais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).  Especialista em Direito dos Contratos e Direito Societário (LLM), pela Instituição de Ensino e Pesquisa – INSPER. Especialista  em  Direito  Civil,  pela Faculda­ de Autônoma de Direito (FADISP). Graduada em Direito, pela Faculdade Autônoma  de Direito  (FADISP). Advogada.  E-mail:  carolina@aus.com.br.
2 Professor Titular de Direito da Universidade Federal de Mato  Grosso  do Sul (UFMS). Pós-Doutor, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor e Mestre em Direito,  pela  Pontifícia  Universidade  Católi­ ca de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Foi presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI)  (2009-2013).  Advoga­ do. E-mail: vladmir@aus.com.br.

 

ABSTRACT 

On December 10, 2018, the Universal Declaration of Human Rights (“UDHR”) will be 70 years old. It is important to emphasize that this Declaration is the result of an experien­ce that devastated Europe after two major wars, resulting in the insurgency of totalitarian regimes that committed the greatest atrocities against humanity by annihilating thousands of inno­cent lives. The Universal Declaration ofHuman Rights served- and still serves – as a guideline so that the so-called “natural rights” of the individual are constantly (re)affirmed. However, a nationalist feeling is again rising in the current geopoliti­ cal scenario, as it can be seen in certain European countries and also in the United States. Thus, this article intends to ad­ dress the following problems: is this incessant search for (re) affirmation sufficient to move towards a new economic, ethi­ cal and/or more just political order? Would Human Rights be on an unreachable horizon, in a rhetorical spectrum, given the current global geopolitical scenario, in which most individuals still remain excluded? For that, the deductive method of re­ search and the bibliographical and historical survey as resear­ ch technique were used, besides the works of Hannah Arendt and Celso Lafer as theoreticalreferences.

Keywords: Universal Declaration of Human Rights. Interna­ tional Human Rights Law. Dinamogenesis. Totalitarian Regi­ mes. Constitutional Right. Institutional Cooperative State.

1   INTRODUÇÃO

Em 1O de dezembro deste ano, comemorar-se-ão os 70 anos da proclamação da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos (“DUDH”) pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (“ONU”). Esta importante Declaração é resultado de uma experiência desoladora decorrente de duas grandes guerras e, na tentativa de se evitar uma terceira, bus­cou-se uma pauta universal que visasse proteger e promover os chamados “direitos naturais”, entendendo-se, assim, como conditio sine qua non para a paz duradoura.

Pode-se afirmar que ao longo desses anos de vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos houve uma busca incessante por parte dos atores internacionais – Esta­ dos e Organizações Internacionais-pela (re)afirmação dos di­ reitos que o referido documento propõe proteger, dentre eles, exemplificativamente, direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e coletivos. Não obstante, indaga-se: Essa busca incessante pela (re)afirmação é suficiente para se cami­ nhar em direção a uma nova ordem mundial econômica, ética e/ou política mais justa? Estariam os Direitos Humanos em um horizonteinalcançável, em um espectro retórico, posto o atual cenário geopolítico mundial, em que grande parte dos indiví­ duos ainda permanece excluída?

Tais indagações são sobremaneira pertinentes, porque, próximo ao aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vê-se um crescente sentimento nacionalista reto­ mando nos cenários europeu – especialmente em função da crise migratória impulsionando partidos considerados de ex­ trema-direita – e norte-americano (com a aversão à migração de mexicanos e haitianos pelo atual governo Trump). E, no passado, esse sentimento nacionalista foi responsável pelo sur­ gimento de regimestotalitários, tal como na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin. Assim, o pon­ to de partida para a proteção dos DireitosHumanos remonta de um passado sombrio, em que, notadamente durante a Segunda Guerra Mundial, as ações militares ultrapassaram os campos de batalha para encontrar guarida, até mesmo em campos de concentração.

Diante desse breve introito, o presente artigo buscará refletir acerca das problemáticas apresentadas, por meio da análise de alguns aspectos que entendemos pertinentes para sua elucidação. Emum primeiro momento, analisar-se-á como os regimes totalitários romperam drasticamente com o que en­ tãose entendia por Direitos Humanos. Por sua vez, na sequên­ cia, perquirir-se-á acerca da reconstrução histórica dos Direi­ tos Humanos, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E, por fim, questionar-se-á acerca das expectativas com relação aos Direitos Humanos à luz dos principais acon­ tecimentos mundiais atuais.

Para tanto, utilizou-se do método dedutivo de pesquisa e do levantamento bibliográfico e histórico como técnica de pesquisa. Para fins deste artigo, utilizaram-se as obras de Han­ nah Arendt e Celso Lafer como referencial teórico.

 

2   O MOVIMENTO TOTALITÁRIO E A RUPTURA COM OS DIREITOS HUMANOS

A ideia central contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo 1º)3 não é inédita. A Declaração de Independência dos Estados Americanos (“DIEA”), bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão(“DDHC”), ambas do Século XVIII 4, já preconizavam tal entendimento. Essa ideia pode parecer óbvia, por ser a liberdade e a igualdade algoque hoje se enten­ de ser intrínseco ao ser humano e capaz de lhe dar a dignidade necessária para umaexistência respeitosa, mas não é, e em um passado não muito longínquo também não foi.

Se tomarmos como exemplo que em plena vigência da Declaração de Independência dos Estados Americanos os escravos não eram titulares de direitos ou que na vigência da Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão as mulheres também não o eram e que o voto era censitário (excluindo-se, portanto, da participação na vida política as mulheres, os po­ bres e os analfabetos), ou até mesmo, mais tarde, com o mo­ vimento de “expansão imperialista”, isto é, de colonização e exploração pelos europeus de povos não europeus, percebe-se a existência de uma proteção material (diante da promulgação de diversos instrumentos internacionais e incorporação desses instrumentos em diversos ordenamentos jurídicos domésti­ cos), mas não real/formal de direitos.

3 DECLARAÇÃO universal dos direitos hum anos. Adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em l O de dezembro 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resour­ ces 10133.html. Acesso em: 23 nov. 2018.
4 O que difere tais instrumentos jurídicos é o alcance dos sujeitos ali pro­ tegidos. Isto é, a Declaração Universal de Direitos Humanos tem um viés mais univ ersal, tratando o indivíduo como detentor de direitos e deveres, independentemente de seu lugar de origem (diversificação dos sujeitos ti­ tulares de direitos).

Muito embora a Declaração dos Direitos do Homem  e do Cidadão tenha sido promulgada no início da Revolução Francesa, cujo tripé de sustentação se baseou na tríade “liber­ dade, igualdade e fraternidade” e serviu de norte  tanto para  a doutrina da dinamogenesis dos Direitos Humanos quanto para o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos,5 uma parcela significativa da população não tinha sequer seus direitos garantidos, dentre eles, as minorias e/ou os refugiados. Isso se intensifica ainda mais quando muitos indivíduos nem sequer eram considerados cidadãos (apátridas) e, portanto, sem direito a ter direitos.

Ao tratar dos eventos que culminaram com a Primeira Guerra Mundial, Hannah Arendt6 preconizou que

A Primeira Guerra Mundial foi uma explosão que dilacerou irremediavelmente a comunida­de dos países europeus, como nenhuma outra guerra havia feito antes. A inflação destruiu toda a classe de pequenos proprietários a ponto de não lhes deixar esperança de recuperação, o que nenhuma crise financeira havia feito antes de modo tão radical. O desemprego, quando veio, atingiu proporções fabulosas, sem se li­ mitar às classes trabalhadoras mas alcançando nações inteiras, com poucas exceções. As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas do que asanteriores: foram seguidas pela migração de compactos grupos humanos que, ao contrário dos seus predecessores mais felizes, não eram bem-vindos e não podiam ser assimilados em partealguma. Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam seu Estado, tomavam-se apátridas; quando per­ diam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos.

5 Nesse sentido, ver lições de: ROCASOLANO, Maria Mendez; SILVEI­ RA, Vladmir Oliveira da. Direitos humanos:conceitos, significados e fun­ ções. São Paulo: Saraiva, 201O.
6 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperia­ lismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo.São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
7 ARENDT, 2012. p. 369.

Essa assertiva simboliza o descompasso entre os ins­ trumentos internacionais dos Direitos Humanos e a realidade fática daquele contexto específico europeu. A apatria consiste em uma situação jurídica na qual os indivíduos assim consi­ derados – tal como as minorias e os refugiados – nem sequer eram considerados pelo arcabouço jurídico do Estado em que se encontravam. Assim, como lecionou Hannah Arendt, “sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem  que seja para oprimi-los.”7  Assim, a afirmação de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” era sobremaneira retórica na­ quele momento.

Tal situação piora ainda mais com a ascensão de regi­ mes totalitários e autoritários que se difundiram pela Europa no Século XX, notadamente no entre guerras mundiais, em que “o limite do aceitável e do inaceitável transbordou devido a estes governos caracterizados principalmente pela ideologia, burocracia e pela ubiquidade do medo. Estes governos me­ diante as leis impostas descaracterizaram os valores consagra­ dos da justiça e do Direito.”8

Nessa nova forma de governo, pequenos grupos de pessoas se organizam em um partido único suprimindo liber­ dades individuais e coletivas e inaugurando um regime de ter­ ror, medo e perseguição – ou extermínio – de opositores polí­ ticos, ou não. Eram constantes as vigilâncias do Partido sobre a vida cotidiana – pessoal e familiar – de seus cidadãos, sendo os seguintes os mais notórios: o Partido Nacional Fascista de Mussolini (Itália), o Partido Nacional Socialista dos Trabalha­ dores Alemães de Hitler(Alemanha) e o Partido Comunista de Stálin (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Celso Lafer 9 explica que totalitarismo “ao almejar a dominação total por meio do uso da ideologia e do emprego do terror para promover a ubiquidade do medo, fez do campo de concentração seu paradigma organizacional”, sendo con­ siderado mais tarde, notadamente  no famoso  Julgamento de Nuremberg, o responsável pelas maiores atrocidades e viola­ções de Direitos Humanos de que se tem notícia na História da humanidade, porquanto inauguraram o “tudo é possível”, levando as “pessoas aserem tratadas, de jure e de facto, como supérfluas e descartáveis.” Como consequência, Celso Lafer1 0 extrai que:

Disso resultou o esfacelamento dos padrões e categorias que, com base na ideia de um Direi­ to Natural, constituíam o conjunto da tradição ocidental, a qual havia historicamente  feito da pessoa humana um ‘valor-fonte’ da expe­ riência ética-jurídica. Disso adveio, também, consequentemente, o hiato entre o passado e o futuro. Esse hiato gera constantes perplexida­ des no presente, já que a tradição – inclusive a do pensamento jurídico – não nos oferece cri­ térios para a ação futura, nem conceitos para o entendimento dos acontecimentos passados.

8 DAGIOS, Magnus. Celso Lafer e a reconstrução dos direitos humanos de acordo com o pensamento de Hannah Arendt. Intuitio, Porto Alegre, v. 3.1, p. 80-98,jun. 2010. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ ojs/index.php /intuitio /article/view/6925 /5143. Acesso em: 25 nov. 2018.
9 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30,  maio/ago. 1997. Disponível em: http://www.scielo.b r/pdf/ea/vl 11130/vl ln30a05.pdf. Acesso em: 23 nov.2018.

A Alemanha, por exemplo, inaugurou uma forma de governar, baseada em ideias antissemitas, restringindo direi­ tos – senão eliminando-os completamente – de determinados povos (por exemplo, dos judeus e dos ciganos), porventura os considerando como não humanos, e indivíduos que não pos­suíssem características “arianas”, sob o pretexto de que eram os responsáveis pela ruína econômica e social enfrentada pelos alemães à época (quando, na verdade, sabe-se que o Tratado de Versalhes impôs uma série de obrigações, mesmo financei­ras, aos derrotados  na Primeira Guerra Mundial, o que levou a Alemanha ao estado de caos quando da ascensão de Hitler).

10 LAFER, 1997, p. 56.

Era preciso, pois, um bode expiatório que justificasse a barbárie que estava por vir e quedesconfiguraria por completo a ideia de valor e de dignidade do indivíduo. Tanto é assim que, em suas pregações ao povo alemão, Hitler bradava: “Quando esses demônios forem destruídos, a vossa miséria terá acaba­ do.“11 Bem verdade que a perseguição contra os judeus não se iniciou na Alemanha de Hitler,1 2 mas foi ali que atingiu o seu auge, mormente a propaganda nazista ensinar que os judeus eram inimigos da Alemanha e justificando, portanto, o Ho­locausto 13 como um mal necessário para sua retomada como potência econômica europeia. Justificavam-se as mortes pelo bem do Estado alemão, mergulhados em um sentimento de desgraça e indignidade. Nesse sentido, esse episódio lastimá­ vel da História é fundamental para se entender o conceito de banalidade do mal – ou a utilização da lei para fins perversos- e o processo de reconstrução dos Direitos Humanos.

11 JUDGEMENT AT nuremberg (1961): for !ove of country. [S. 1.: s. n.], 1961. l vídeo (9 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?­ v=HPIEl4ebB5Q&feature=youtu.be. Acesso em: 23 nov.2018.
12 Esclarece Hannah Arendt que “O verdadeiro conteúdo da propaganda antissemita do pós-guerra [depois de 1918] não eramonopólio dos nazistas nem particularmente novo e original. Mentiras acerca de uma conspiração judaica mundial haviam sido veiculadas desde o Caso Dreyfus, e basea­ vam-se na inter-relação e interdependência do povo judaico disseminado por todo o mundo. Mais antigas ainda são as noções exageradas do poder mundial dos judeus; encontramo-las em fins do século XVIII, quando a estreita relação entre os comerciantes judeus e os Estados-nações se tornou visível. A apresentaçãode ‘o judeu’ como a encarnação do mal é geralmen­ te atribuída a vestígios e supersticiosas lembranças da Idade Média, mas na verdade tem íntima ligação com o papel mais recente e ambíguo que os judeus representaram na sociedade europeia depois da sua emancipação. Uma coisa era inegável: no período do pós-guerra, os judeus haviam se tornado mais proeminentes do que nunca.” ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
13 Há ainda hoje historiadores que negam sua existência,  como é o caso  do autor inglês David John Cawdell Irving. Em suas obras, referido autor fez diversos revisionismos históricos, sobretudo  sobre a Segunda  Guer­ ra Mundial, na tentativa de convencer o público de que o extermínio em massa de judeus nunca existiu. Sua disputa judicial em um tribunal britânico com uma historiadora americana de origem judaica, Deborah Esther Lipstadt, que refutou as teses de seu livro, virou filme (Negação). Ao fi­ nal do julgamento, Irving foi severamente criticado e considerado  racista e antissemita, perdendo sua credibilidade como historiador. BBC News. Hitler historian toses libel case. Disponível em: http://news.bbc.co.u k/2/ hi/uk news/709128.stm. Acesso em: 24 nov. 2018.
14 FELÍCIO, Carmelita Brito de Freitas. Direitos  humanos  ou o direito  a ter direitos?: um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. 2000. 112 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia Política) – Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás,  Goiânia, 2000. Disponível em: https://pos.filosofia.ufg.br /up/ 115/o /Carmelita_Bri­ to_de_Freitas_Fel%C3%ADcio.pdf?149263762 I. Acesso  em:  23  nov. 2018.

3   A RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA DECLARAÇÃO UNI­ VERSAL DOS DIREITOS HUMANOS (1948)

Diante do contexto acima exposto, a ruptura dos Direi­ tos Humanos ocorreu no momento em que foram negados aos judeus (e demais povos perseguidos pelo regime nazista) sua própria existência, sua dignidade, sendo tratados como seres não humanos, supérfluos e descartáveis. Para Carmelita Fe­lício,14 este é o primeiro passo no processo de ruptura, isto é, a “destruição da pessoa jurídica do homem e de sua personalidade legal e moral.” O segundo seria a “anulação da indivi­ dualidade e da espontaneidade, de forma que seja eliminada a capacidade humana de iniciar algo novo.”

Nesse sentido, a Declaração dos Direitos do Homem  e do Cidadão falhou enquanto mecanismo de defesa de direi­ tos.15 A ausência de universalidade e a abstração dos Direitos Humanos, nessa ocasião histórica, beneficiaram o aparecimen­to de um Estado-Nação, também conhecido como Estado Na­cional, vinculado ao conceito de soberania absoluta nacional, em que de uma só vez, os mesmos direitos essenciais eram reivindicados como herança inalienável de todos os seres humanos e como herança específica de nações específicas; a mesma nação era declarada, de uma vez só, sujeita a leis que emanariam supostamente dos Direitos dos Homens, e soberana, isto é, independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a si própria.16

As consequências desse paradoxo restaram claras nos anos que se seguiram. Primeiro, porque os Direitos Humanos passaram a ser entendidos sob a forma de direitos dos indiví­ duos circunscritos em determinado território. O poder sobe­ rano do Estado-Nação não reconhecia qualquer outro poder como superior ao seu próprio e,portanto, não havia de se falar em subserviência a qualquer outro ordenamento jurídico, até mesmointernacional.

1 7 Nesse sentido, esclarecem Ana Caroli­na Souza Fernandes e Vladmir Oliveira da Silveira 18 que,

Por suas próprias características e elementos constitutivos (povo, território e soberania), de acordo com a teoria clássica do Estado-Nação , bem como a natureza do sistema internacio­ nal, os Estados são exemplos de sujeitos ori­ ginários de direito internacional público por excelê ncia, como decorrência do princípio da igualdade soberana. Este princípio, surgido no Tratado da Paz de Vestefália e consolidado no Concerto Europeu, não mais é do que reconhe­ cer a horizontalidade das relações estatais , na qual cada Estado-Nação , dentro da perspecti­ va daTeoria Geral do Estado , goza de determ i­ nados direitos intrínsecos à soberania.

15 Hannah Arendt leciona que “Não precisamos insistir nas dificuldades inerentes ao próprio conceito de direitos humanos, nem na lamentável ine­ ficácia de todas as declarações, proclamações ou enumerações de direitos humanos que não foram imediatamente incorporados à lei positiva, à lei local, e aplicadas a todos os que lá viviam. O problema com esses direitos sempre foi que eles não podiam ser mais do que direitos dos nacionais, e que só eram invocados, como último recurso, por aqueles que haviam per­ dido seus direitos normais de cidadão.” ARENDT, Hannah. Da Revolução. Tradução Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Perspectiva, 1988.
16 ARENDT, 1988, p. 143.
1 7 Talvez seja por essa razão que muitos dos instrumentos internacionais promulgados posteriormente sob o auspício da ONU mencionavam que um Estado não poderia alegar razões de direito doméstico para descum­ prir tratados inte rnacionais. Nesse sentido, ver artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969: “Uma parte não podeinvocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.” BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Pro­ mulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Brasília, DF: Presi­ dência da Republi ca, 2009. Disponível em:http://www.planalto.gov.br /cci­ vil 03/ ato2007-2010/2009/decreto /d7030.htm. Acesso em: 23 nov. 2018. 1 8 FERNANDES, Ana Carolina Souza; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da Sujeitos de direito internacional públic o: um processo evolutivo de reco­ nhecimento. Revista Direito e Paz, v. 1. n. 38, p. 134-153, 2018, Dis­ ponível em: http://revista.unisai.br/lo/index .php/direitoepaz/article/down­ load/892/400/. Acesso em: 23 nov. 2018.

Segundo, porque afastou a ideia de que os Direitos Hu­ manos protegiam o gênero humano como um todo, isto é, a diversidade e a pluralidade humanas, mas tão somente alguns indivíduos ligados adeterminado Estado-Nação. Essa circuns­ tância propiciou a utilização da teoria dos Direitos Humanos de forma equivocada pelos regimes totalitários e, principalmente, para justificar o extermínio dos “não cidadãos” alemães.

De fato, estabeleceu-se uma relação de subordinação entre os direitos humanos e a soberania, aponto de tais direitos serem usufruídos

 pelos nacionais de determinado Estado sobe­rano, sendo tais direitos negados, integral ou parcialmente, aos que não possuem a nacio­nalidade ou a cidadania do Estado soberano no qual se encontrem. A restrição dos direitos humanos aos nacionais de um Estado sobera­ no conduz ao falso pressuposto de uma homo­ geneidade do seu povo.19

Não por outra razão, essa subordinação propiciou outra contradição, ou seja, não obstante estar incumbido de assegu­rar a proteção e a eficácia dos Direitos Humanos, o Estado-Na­ção foi – e ainda é – o maior violador dos Direitos Humanos de todos os tempos.

19 DANTAS, João Marcelo B. R. Ruptura e reconstrução dos direitos hu­ manos em Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 24, n. 5671,  10 jan. 2019. ISSN 1518-4862.  Disponível  em: https://jus.com.br/artigos/67883. Acesso em: 23 nov. 2018.

E terceiro, e como consequência das razões anteriores, porque aos refugiados, aos apátridas e às minorias (igualmente chamados de displaced people), lhes foram privados todos os tipos de direitos e, em especial, o direito à cidadania; portanto, não estavam abrangidos pelos benefícios do princípio da lega­lidade, em que todos são iguais em dignidade e direitos. A esse respeito, Celso Lafer20 leciona que

A experiência histórica dos displaced people levou Hannah Arendt a concluir que “a cida­ dania é o direito a ter direitos”, pois a igualda­ de e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao espaço público- “o direito de pertencer a uma comunidade política” – que permite a construção de um mundocomum por meio do processo de asser­ ção dos Direitos Humanos.

Esses três aspectos acima apontados – entende-se – ca­racterizam a ruptura dos Direitos Humanos, a qual, a priori, foi sendo reconstruída a partir da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos21 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Surge em um contexto de não violência e num ambiente propício àconcretização do primado da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), sobretudo depois do longo período de guerras e atrocidades cometidas contra indivíduos específicos, sem contar com as desgastadas estruturas políticas e sociais europeias.

20 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, maio/ago. 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf /ea/v l l n30/v l ln30a05.pdf. Acesso em: 23 nov.2018.
21 Da mesma forma que a DDHC, a DUDH sofreu críticas. Assim dispõe Carmelita Brito de Freitas Felício: “Os princípios da igualdade, da liber­ dade e da fraternidade, que formam a base doutrinária desses direitos, per­ manecem abstratos e as dificuldades empíricas de aplicação prática dos direitos humanos podem ser atestadas à luz da lamentável ineficácia das declarações que, na história recente da civilização ocidental, proclamaram, reconheceram, mas não se transformaram em instrumento efetivo de pro­ teção dos direitos humanos e essa é a realidade em que vivemos há dois

A Organização das Nações Unidas,  portanto, passou a ter grande relevância no cenário internacional,22 quebrando um paradigma no que se refere à proteção de direitos, que ou­ trora se limitava às fronteiras nacionais. Nesse sentido, a De­ claração Universal dos Direitos Humanos inseriu os Direitos Humanos num contexto global, direitos estes decorrentes de legítimas e verdadeiras conquistas da sociedade civil (e não como concessão dos detentores do Poder) após longos tempos de resistência em seureconhecimento.

Aliado a este fato, tem-se, mais adiante, o término da Guerra Fria pondo fim a uma dualidade política (capitalismo versus socialismo) com a dissolução da União das Repúbli­ cas Socialistas Soviéticas, dando “vazão àpossibilidade de um maior diálogo entre a sociedade internacional sobre temas re­ levantes (como, porexemplo, proteção dos direitos humanos); por outro, contestou o conceito de soberania estatal, com vistas apropor um modelo cuja solidariedade entre os Estados se so­ brepusesse aos interesses individuais dosmesmos.”23

séculos.” FELÍCIO, Carmelita Brito de Freitas. Direitos humanos ou o direito a ter direitos?: um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. 2000. 112 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia Política) – Fa­ culdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2000. Disponível em: https://pos.filosofia.ufg.br /up/115/o/Car­ melita_Brito_de_Freitas_Fel%C3%ADcio.pdf?1492637621. Acesso em: 23 nov. 2018.
22 Principalmente a partir do momento em que se reconheceu que as orga­ nizações internacionais também eram sujeitos de Direito Internacional Pú­ blico. Como consequência desse reconhecimento, surgiu o conceito de so­ berania compartilhada, oque significa uma “desnacionalização” do Estado. Um exemplo bastante notório de soberania compartilhada foi o processode integração de alguns países europeus constituindo o que hoje conhecemos por União Europeia.

Eis que surge a Teoria da Democracia, a qual coloca  o indivíduo acima do Estado, e este “só se justifica se estiver a serviço da dignidade da pessoa humana,” 24 entendida esta como

[…] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte  do  Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamen­ tais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desu­ mano, como venham a garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.25

 

23 FERNANDES; SILVEIRA, 2016, p. 73-93.
24 MALISKA, Marcos Augusto. A Cooperação internacional para os direi­ tos humanos entre o direito constitucional e odireito internacional. desafios ao estado constitucional cooperativo. ln: CONGRESSO DO CONPEDI, 24., 2015, Belo Horizonte, Anais […].Belo Horizonte: UFMG, 2015. Dis­ ponível em:
http://www.publicadireito.com.br /conpedi/manaus /arquivos/anais/bh/mar­ cos_augusto_maliska.pdf. Acesso em: 23 nov. 2018.
25 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fun­ damentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.

Referida Teoria deu a exata importância aos Direitos Humanos e revolucionou na questão dacidadania, uma vez que alargou o seu conceito – deixando para trás a ideia de súdito e soberano – para uma perspectiva difusa e universal, elevando o indivíduo a um status de “cidadão do mundo”, merecedor de tutela em todas as esferas (doméstica, regional e internacional porque, refrisa-se, “não se pode mais admitir que os direitos humanos se circunscrevam tão somente aos nacionais de um determinado Estado, ainda mais sendo ele o principal, senão o maior, violador dos direitos humanos, incapaz, portanto, de preservar a dignidade de seus próprios cidadãos.”26

Todavia, na prática, a noção de cidadania mundial pre­ gada por Hannah Arendt está longe de ser umfato. Mais pare­ ce estar no campo da retórica, na subcategoria de “promessas não cumpridas”. Isso porque não obstante diversos países ra­ tificarem tratados internacionais voltados à proteção dos seres humanos, se necessário, eles são os primeiros a descumprir o conteúdo desses documentos internacionais. Assim, uma ca­ racterística desse direito é o seu caráter utópico, não em sua acepção comum, como algo impossível ou, nesse caso, que não se cumpre; mas como algo desejável e que se constitui dia a dia.27

26 FERNANDES; SILVEIRA, 2016, op cit., p. 73-93.
27 Já dizia o autor uruguaio Eduardo Hughes Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

3 OS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE

O presente artigo não tem o objetivo de refutar a re­ construção histórica dos Direitos Humanos com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos; mas, pelo con­ trário, reafirmar a sua importância para que os seres humanos possam viver em harmonia na diversidade e ter sua dignidade assegurada. No atual estágio de (re)afirmação dos Direitos Hu­ manos vale os dizeres de Norberto Bobbio deque “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-lo, mas o de protegê-los.” 28

Todavia, para que haja essa proteção do gênero huma­no e a concretização de seus “direitos naturais”, não se pode fechar os olhos para o que acontece ao nosso redor, principal­ mente com as reiteradas crises migratórias que ainda persistem em acontecer não só na Europa – como também na América- e dos eventos extremistas que ali também se concentram, sob pena de omissão que pode contribuir para  a ocorrência de novas barbáries, tal como outrora. Como seres humanos e pensantes, é deveras importanteum olhar clínico e crítico para apontar eventuais falhas ao longo desse constante processo de (re)afirmação dos Direitos Humanos.

28 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

É verdade que as crises migratórias em nada se compa­ ram ao Holocausto – salvo os grandes deslocamentos que ali ocorreram -,  mas desafiam a concretização dos pilares da Revolução Francesa e corroboram a ideia de exclusão (ao invés de convergir para a noção de “cidadão do mundo”). É o que a pós-modernidade reserva para os Direitos Humanos solucio­ nar. De acordo com aprópria Organização das Nações Unidas, até junho deste ano o número de deslocados sírios para a Euro­ pa atingiu um recorde de 68,5 milhões de indivíduos. 29 Ainda, de acordo com a própria Organização das Nações Unidas, 2,3 milhões de venezuelanos já deixaram seu país de origem, ten­ do o Brasil como destino para 2% deles.30 Só para citar exem­ plos mais recentes.

Ana Carolina Souza Fernandes e Vladmir Oliveira da Silveira,3 1 a despeito da crise migratória que ainda enfrenta a União Europeia, dispuseram:

Fato é que a União Europeia não tem consegui­ do absorver de maneira satisfatória a quantida­de de refugiados e, em contramão ao Acordo de Schengen e do Estado Constitucional Coo­perativo que eles próprios tornaram realidade, passaram a controlar suas fronteiras. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a França e Áustria que fecharam suas fronteiras com a Itália, im­ pedindo pessoas de entrar nesses territórios caso não estivessem portando documentos de identidade. Em resumo, a União Europeia en­ contrava-se (e ainda se encontra) envolta em um caos migratório, com dificuldades de lidar com os refugiados e, concomitantemente tinha que encontrar soluções para a Grécia, que, além de enfrentar uma grave crise econômi­ ca, ainda sofria com a chegada incessante de refugiados.

 

29 CAZARRÉ, Marieta. Número de refugiados bate novo recorde e atinge 68,5 milhões. EBC Agencia Brasil, 19 jun. 2018. Disponível em: http:// agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-06 /nume ro-de-refu­ giados-bate-novo-recorde-e-atinge-685-milhoes.Acesso em: 25 nov. 2018.
30 PASSARINHO, Nathalia. Brasil recebe apenas 2% dos 2,3 milhões de Venezuelanos expulsos pela crise. BBC NewsBrasil, 21 ago. 2018. Dispo­ nível em: https://www.bbc.com/po rtuguese/brasil-4525 l 779. Acesso em: 23 nov. 2018.
31 FERNANDES, Ana Carolina Souza; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. A Crise de refugiados na união europeia e a proteção dos direitos huma­ nos sob a perspectiva do estado constitucional cooperativo. ln: IENSUE, Geziela; CARVALHO, Luciani Coimbra de (org.). Migração, direitos humanos e cooperação jurídica internacional. No prelo, 2016

Mister mencionar ainda que pouco tempo atrás a Po­ lônia, a Hungria e a República Tcheca foram punidas pela Comissão Europeia por se recusarem a cumprir o acordo da União Europeia sobre a partilha (recolocação e reinstalação) de refugiados sírios, argumentando que políticas de segurança pública são de competência doméstica, e não do bloco. Note­ se que tal afirmação é fundada na teoria da soberaniaabsoluta em total contramão à teoria da soberania compartilhada trazida pela Declaração Universal dosDireitos Humanos. E pior, con­ tra os valores de solidariedade e cooperação que viabilizam a própria União Europeia. Vale dizer que todos esses países são governados por ultranacionalistas, que insistem em políticas anti-imigração.

A crise migratória e a falta de uma solução viável e inclusiva para essas displaced persons fez ressurgir sentimen­ tos nacionalistas e discursos de intolerância misturados a uma aversão aomulticulturalismo, tal como na Alemanha de Hitler.

Vejam as razões do ataque terrorista na Nomega em 2011.32 Ou senão, o crescente movimento dos”supremacistas brancos” na Suécia,33 com o objetivo, dentre outros, de preservação de sua identidade. Enfim, os exemplos vêm aumentando e é preciso encarar que essas situações são reais e podem ameaçar todo o esforço construído até aqui pela sociedade internacional em garantir a paz e a proteção dos Direitos Humanos.

Do ponto de vista antropológico, Claude Lévi-St rauss34 analisou a ausência da pluralidade cultural nas sociedades da seguinte forma:

A diversidade das culturas é de fato no pre­ sente, e também de direito no passado, muito maior e mais rica que tudo o que estamos des­ tinados a dela conhecer. […].Pensara plurali­ dade implica o reconhecimento de que a vida da humanidade não se desenrola sob o regime de uma uniforme monotonia. […]. Nenhuma fração da humanidade dispõe de fórmulas apli­ cáveis ao conjunto e uma humanidade confun­ dida num gênero de vida único é inconcebível; esta seria uma humanidade petrificada.

Desse modo, é importante aqui destacar que o continente europeu e outras regiões poderão em breve reabrir a cai­xa de pandora, libertando novamente o mal(no caso, extremis­ mos e radicalismos) que, por anos, a sociedade internacional tenta evitar por meio de cooperação e movimentos solidários. Os governos socialdemocratas europeus enfrentam uma crise de legitimidade sem precedentes porquanto não conseguem cumprir as suas promessas de garantia de igualdade e a prote­ção dos mais vulneráveis, notadamente os refugiados.35

32 Um bom exemplo para ilustrar esse ponto de vista é o documentário chamado “22 de julho” e que conta a história de um jovem extremista no­ rueguês que não só explodiu um prédio oficial do governo em Oslo, como matou 68 jovens em um acampamento na ilha de Utoya, também na No­ ruega. O documentário retrata uma nova forma de extremismo e os perigos advindos dos discursos de ódio.
33 Em contraposição ao movimento migratório africano ao País, a quem os suecos responsabilizam pela alta da criminalidade.
34 LÉVI-STRAUSS , Claude. Raça e história. ln: Os pensadores . Tradução Inácia Canelas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p. 45-87.

Nesse sentido, convém ter em mente que a simples for­ malidade de estabelecer em constituições e leis ordinárias a limitação do poder do Estado, embora importante, não assegu­ ra por si só o resguardo e aconstante observância dos Direitos Humanos. É preciso, pois, que os Direitos Humanos saiam de uma concepção teórica abstrata para o campo das ações con­ cretas e efetivas, capazes de desenvolver umaestrutura que dê concretude aos Direitos Humanos proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em instrumentos jurídicos internacionais subsequentes.36

35 Em 2017, entrou em vigor no Brasil uma nova Lei de Migração (Lei n. 13.445), revogando o ultrapassado Estatuto do Estrangeiro, promulgado durante o Regime Militar e pautados por interesses nacionais de segurança. Por outro lado, essa nova lei é um marco na política migratória brasileira por estar compatível com os mais importantes instrumentos internacionais sobre os Direitos Humanos. Não obstante, somente o tempo nos dirá se a referida legislação é mais um instrumento formal ou se efetivamente terá o condão de concretizar os direitos humanos dos migrantes no nosso país.
36 Nesse sentido, vale a pena  ver o Projeto Estou  Refugiado,  movimen­ to que nasceu da convicção de que a questão dos refugiados está envolta em uma densa nuvem de desinformação e preconceito. ESTOU refugiado. Maquina de CVs: você acredita em destino? São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.un icef.org/brazil/pt/resources_10 l 33.html. Acessoem: 23 nov. 2018.

 

4   CONCLUSÃO 

O objetivo deste artigo foi além de estabelecer as pre­ missas dos Direitos Humanos – que na doutrina pátria já é abundante. Buscou-se confrontar de forma objetiva aspectos fáticos e concretos queculminaram com a ruptura dos Direitos Humanos e sua posterior reconstrução histórica para, ao final, analisar a situação dos Direitos Humanos ante o atual cenário geopolítico mundial.

Neste desafio, percebeu-se que os instrumentos jurí­ dicos internacionais que precederam a Declaração Universal dos Direitos Humanos falharam sobremaneira na proteção dos direitos do ser humano, porquanto certas categorias de indi­ víduos nem sequer eram consideradas titulares de direitos. A concepção de que os homens eram livres e iguais em digni­ dade e direitos consistia em mera retórica diante da realidade estabelecida naquele momento.

O fim da Primeira Guerra Mundial e o mau desempe­ nho econômico de alguns países europeus contribuiu para o surgimento de regimes totalitários e nacionalistas pautados na ideia de soberania absoluta e, como consequência, crescentes foram os indivíduos considerados displaced, que não tinham um lugar nomundo nem um ordenamento jurídico que os pro­ tegesse. Era dizer que tais indivíduos nem sequer existiam, porquanto não inseridos no trinômio Estado-Povo-Território. Se não existiam, não possuíam valor. Se não possuíam valor, tomavam-se supérfluos e descartáveis, e não de outra forma foram tratados nos campos de concentração alemães, o que acabou se tornando o maior caso de crime contra a Humanida­de da História.

Com a substituição da Liga das Nações pela Organi­ zação das Nações Unidas e notadamente coma promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, iniciou-se um movimento de (re)afirmaçãodos Direitos Humanos, porque se passou a tratá-los numa plataforma universal e que pressupu­ nha a delimitação da soberania estatal, porquanto surgem as organizações internacionais que passam a”complementar” o Estado também como sujeito de Direito Internacional Público.

Assim, quebram-se os seguintes paradigmas: (i) de que a proteção de direitos estava restrita às fronteiras nacionais de um país; e (ii) que o Estado por si só poderia garantir a obser­ vância desses direitosà sua própria população. A sociedade in­ ternacional chamou para si a responsabilidade de construir ummodelo em que a solidariedade e a cooperação eram a força motriz do sistema e que os interesses individuais se sobrepu­ sessem à dos Estados, porque somente assim se poderia alcan­ çar a dignidade plenados indivíduos (Teoria da Democracia). Todavia, no cenário desafiante atual essa mesma socie­

dade internacional poderá retroceder e não conduzir correta­ mente esse processo de re(afirmação) doDireitos Humanos, se considerarmos o que vem ocorrendo na América e, em maior grau, na Europa, “permitindo” o reaparecimento de sentimen­ tos de ódio e antissemitismo que outrora serviram de justifica­ tiva para atos cruéis de extermínio. Assim, a atuação dos  Estados e das Organizações Internacionais imprescinde de uma maior altivez para construir uma ordem mundial mais justa e compatível com preceitos dos Direitos Humanos que construí­ ram ao longo da história, em especial nos últimos 70 anos.

A História é cíclica e tende a se repetir. Mas não é pre­ ciso que tenhamos de percorrer caminhos mais difíceis e de retrocessos para ter de (re)afirmar de modo contínuo a impor­ tância de efetivamente concretizar os Direitos Humanos. No eminente aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem-se o desafio de olhar criticamente para nossos atos e omissões. Mais que tudo, deve-se buscar inspira­ ção nos valores consagrados e na memória da História.

 

REFERÊNCIAS

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2021-05-13T11:28:35-03:00

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